José Carlos Ruy, no Vermelho
Um exame dos resultados das Copas do Mundo de 1990 a 2014 mostra o
declínio do futebol-força dos europeus e a ascensão do futebol-arte dos
latino-americanos. Esta tendência veio para ficar?
É inegável que os avanços vividos pelos países da América Latina desde 1998 se refletem no bom desempenho que suas seleções mostram na Copa do Mundo de futebol.
É inegável que os avanços vividos pelos países da América Latina desde 1998 se refletem no bom desempenho que suas seleções mostram na Copa do Mundo de futebol.
Os países da região
vivem um bom momento (talvez o melhor de sua história) desde 1998, quando Hugo
Chávez foi eleito pela primeira vez para a presidência da República na
Venezuela, fortalecendo a resistência antineoliberal. Esta tendência foi
confirmada com as eleições de Luís Inácio Lula da Silva, no Brasil (2002) e
Nestor Kirchner na Argentina (2003). Foi o início de uma década de crescimento
econômico, combate à pobreza, conquistas sociais e afirmação da soberania
nacional dos países latino-americanos.
Seria um exagero
determinista supor a existência de uma relação direta de causa e efeito entre
as melhorias políticas, econômicas e sociais vividas neste lado do mundo. Mas
também não há como negar o fortalecimento do orgulho nacional, da autoestima e
do alto astral popular que varrem do mapa o tradicional “complexo de
vira-latas” inspirado em muitos pelos antigos dominadores coloniais. Complexo
de vira-latas que, hoje, ficou confinado apenas em setores minoritários de uma
classe dominante que se sente estrangeria em seus próprios países. A crise
profunda vivida pela Europa e pelos EUA, agravada desde 2007, também contribuiu
para este quadro que se traduz em mudanças na distribuição do poder no mundo e
na ascensão de países antes relegados (com o apoio de suas próprias classes
dominantes) a posições subalternas.
O futebol moderno surgiu
na Inglaterra, em 1863, quando foram estabelecidas as regras iniciais para o
esporte que rapidamente se difundiu pela Europa. E, um pouco mais tarde, pela
América do Sul. Se, na Europa, era um esporte popular e basicamente operário,
por aqui era praticado, nos primeiros tempos, por setores da elite. Assim,
surgiram as primeiras organizações nacionais do futebol em 1893 (Argentina),
1895 (Chile) e 1900 (Uruguai).
No Brasil, segundo uns o
primeiro jogo teria sido disputado em 1894, mas há os que argumentam que outros
jogos teriam ocorrido antes. De qualquer forma, aquele que é considerado o
“pai” do futebol brasileiro - o filho de imigrantes ingleses, ferroviários,
Charles Muller - teria organizado em 1894 o primeiro time de futebol no país, o
São Paulo Athletic Club (que não é o atual São Paulo Futebol Clube)
e promoveu aquele primeiro jogo. Isso faz 120 anos! Era uma época em que o
futebol era algo de elite; foi somente na década de 1920 que começou a ganhar
as massas e tornar-se quase sinônimo de brasilidade.
Aquele era um tempo em
que o futebol era praticado principalmente na Europa e na América do Sul, com
clara hegemonia europeia. Hegemonia cuja superação, hoje, parece visível quando
se considera os resultados das Copas do Mundo de 1990 a 2014.
Em 1990 a Copa ocorreu
na Itália e o campeão foi a Alemanha. Nas oitavas de final participaram
Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, Iugoslávia,
Romênia e Tchecoslováquia (países europeus), Argentina, Brasil, Colômbia, Costa
Rica, Uruguai (latino-americanos) e Camarões (africano). Isto é, foram 10
seleções europeias, cinco latino-americanas e uma africana. Nas quartas de
final, apenas uma seleção não europeia esteve na disputa - a Argentina.
Em 1994 a Copa foi
disputada nos Estados Unidos, vencida pelo Brasil (que se tornou tetra campeão
mundial de futebol). Nas oitavas de final pode-se ver novamente a presença
maciça dos europeus. Lá estavam Alemanha, Bélgica, Bulgária, Espanha, Holanda,
Irlanda, Itália Romênia, Suécia e Suíça (dez seleções); Argentina, Brasil e
México (América Latina, com três seleções), além de Estados Unidos (América do
Norte), Nigéria (África) e Arábia Saudita (Oriente Médio). Nas quartas de
final, somente o Brasil desafiou o predomínio europeu.
1998 foi o ano da Copa
na França, que se sagrou campeã mundial. As oitavas de final tiveram a
participação das seleções europeias da Alemanha, Croácia, Dinamarca, França,
Holanda, Itália, Inglaterra, Noruega e Romênia (nove seleções); da América
Latina: Argentina, Brasil, Chile, México e Paraguai (cinco seleções); da
África: Nigéria (uma seleção). Nas quartas de final participaram as seleções
latino-americanas da Argentina e do Brasil.
A Copa de 2002
realizou-se do “outro lado do mundo”, na Coreia do Sul e Japão (esta foi outra
novidade: pela primeira vez ocorreu em dois países). E Brasil, vencedor,
tornou-se pentacampeão mundial de futebol. Lá estavam, nas oitavas de final,
oito seleções europeias (Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Inglaterra,
Irlanda, Itália e Suécia), três latino-americanas (Brasil, México e Paraguai),
três asiáticas (Coreia do Sul, Japão e Turquia), uma da América do Norte (EUA)
e uma da África (Senegal). E, nas quartas de final, pela primeira vez, mais da
metade das classificadas não eram europeias: Brasil, EUA, Coreia do Sul,
Senegal e Turquia; apenas três foram europeias: Alemanha, Espanha e
Inglaterra.
O fim da hegemonia
europeia começava a ser desenhado nos estádios da Coreia e do Japão. Em 2006 a
Copa voltou a ser sediada em território europeu, e a hegemonia tradicional teve
uma sobrevida quando ocorreu na Alemanha e foi vencida pela Itália. Nas oitavas
de final participaram novamente dez seleções europeias (Alemanha, Espanha, França,
Holanda Inglaterra, Itália, Portugal, Suécia, Suíça e Ucrânia); quatro foram
latino-americanas (Argentina, Brasil, Equador e México), uma da Oceania
(Austrália) e uma da África (Gana). Nas quartas de final, apenas Argentina e
Brasil representaram o mundo não-europeu.
Foi na Copa de 2010 que
a mudança na hegemonia do futebol mundial parece ter vindo para ficar. A Copa
de 2010 ocorreu na África do Sul, vencida pela Espanha. As oitavas de final
foram disputadas por seis seleções europeias (Alemanha, Eslováquia, Espanha, Holanda
Inglaterra e Portugal), seis latino-americanas (Argentina, Brasil, Chile,
México, Paraguai e Uruguai), uma da América do Norte (EUA), duas da Ásia
(Coreia do Sul e Japão) e uma da África (Gana). Nas quartas de final, da mesma
forma, as seleções europeias ficaram com metade das vagas, sendo as demais
disputadas por seleções da América Latina (três: Brasil, Argentina e Uruguai) e
da África (Gana).
O futebol acompanha
também as mudanças de poder e prestígio no mundo? Pode ser que sim, e os
resultados vistos até agora na Copa do Brasil fortalecem esta crença. Aquilo
que a mídia apelidou de “show” de zebras demonstra que, de fato, a mudança está
ocorrendo e parece se consolidar nesta que os jornalistas internacionais já
chamam de “copa das copas”. Nas oitavas de final predominaram as seleções
latino-americanas (foram sete: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica,
México e Uruguai); as europeias ficaram em segundo lugar (foram seis: Alemanha,
Bélgica, França, Grécia, Holanda e Suíça) houve ainda duas africanas (Argélia e
Nigéria) e uma da América do Norte (EUA). E, nas quartas de final esta
tendência parece se repetir, dividindo a disputa entre seleções europeias e
latino-americanas: são quatro da margem ocidental do Oceano Atlântico
(Argentina, Brasil, Colômbia e Costa Rica) e quatro da margem oriental
(Alemanha, Bélgica, França e Holanda).
Nas arenas onde o
campeonato mundial de futebol está sendo disputado, no Brasil, vai sendo
escrita uma história que vai além do enfrentamento de 2014. Nela está em jogo
também a consolidação de uma nova hegemonia, a do futebol-arte dos
latino-americanos (principalmente dos brasileiros) contra o futebol-força dos
europeus. Esta é uma tendência que as próximas copas poderão confirmar. E, se
isto ocorrer, ganham a arte do esporte, e também os bilhões de espectadores que
a acompanham através do mundo.
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