Perfil de um voto
Marco Albertim, no Vermelho
- Por que a senhora
está vestida de azul?
- Pra ninguém saber que eu voto em Dilma.
- Pra ninguém saber que eu voto em Dilma.
Seria
um fim de tarde rotineiro, caso Dilma Rousseff não viesse ao Recife. Seria uma
tarde tão cinzenta quanto a amurada de concreto em volta dos tanques com peixes
e tartarugas, no Parque 13 de Maio. A mulher, vestida de azul, viu-se diluída
no meio da multidão vestida de vermelho. Não decidiu mostrar-se de vez, ficou
por trás de um sombreiro de tronco grosso. Mas logo cansou e foi sentar-se num
banco, assim que uma estudante fogosa resolveu agitar sua bandeira vermelha, quando
ouviu do alto-falante distante, que Lula viera com Dilma. A estudante fora dar
expansão a sua energia revolucionária. A mulher acomodou-se para fazer o
cálculo das consequências, caso decida votar em Dilma Rousseff.
Com pouco mais de sessenta anos, inda que aparentando ter setenta nas costas abauladas. O vestido, um tailleur caboclo, sem o casaco, cobrindo os ombros, metade dos braços e tão comprido que não se via um palmo das pernas abaixo dos joelhos. A singularidade do traje chamou a atenção da estudante, de cabelos tão ruivos quanto sua camiseta e a bandeira balouçante. Com pernas curtas e ágeis, voltou para o banco onde estivera sentada. Por certo movida pela energia, e por ter cedido a prerrogativa de usar o assento, insistiu com a mulher:
- Hoje é dia de usar vermelho!
Sem poupar o riso febril no rosto sardento, tirou um adesivo pequeno, dos muitos que tinha no tiracolo pendurado no ombro; tirou-o e colou-o no vestido da mulher, acima do peito. Pasma, meio tonta, a sexagenária reagiu como alguém que quer se livrar de um incômodo percevejo.
- Mas a senhora disse que vai votar em Dilma...!
- Mas não quero que ninguém saiba.
- A senhora sabia que nesta praça cem mil pessoas aplaudiram Carlos Prestes num comício?
- Quem é Carlos Prestes?
- O Cavaleiro da Esperança.
- Ele não está aqui não!?
- Ele já morreu.
- E agora?
- Agora, Dilma é a esperança.
- Essa festa toda só por causa de uma mulher.
- Não é só por causa de uma mulher. É porque a vida vai mudar pra todo mundo, até pra senhora. De onde a senhora é?
- De Panelas de Miranda. Lá tem muita terra e pouca gente plantando.
- E isso que pode mudar.
Formou-se um reboliço a dez metros dali. Um crioulo retinto, de olhos vivazes, fazendo uso do pragmatismo sem retórica, anunciou a distribuição de camisetas vermelhas. A estudante correu para perto, conseguiu uma camiseta e trouxe para a mulher.
- Tome.
A mulher dobrou-a, segurando-a entre as mãos sobre o regaço.
- Vista agora!
- Não. Só quando chegar em casa.
Ao lado das duas, o homem da carrocinha de sorvete, usando camiseta vermelha, instalou uma bandeira da mesma cor, na bandeja da carrocinha. Instalou-a e aumentou o preço do sorvete, para tirar proveito da festa vermelha.
O alto-falante, por fim, anunciou a presença de Dilma Rousseff ao lado de Lula. A multidão correu para a frente da Câmara Municipal. O sorveteiro também se pôs em disparada. O céu do Recife, o do centro, fechou-se com a cor chumbosa do fim da tarde. Difícil mesmo era perceber que a sombra densa acima das cabeças, era um envoltório blindado a chuvas e trovões. Não se viam nomes, inda que sorvessem o fôlego espectral de Cristiano Cordeiro, Gregório Bezerra, Diógenes Arruda, Pelópidas Silveira e Miguel Arraes.
A mulher do vestido azul viu-se só, sem a interlocutora de presença fugaz. Quis seguir o cortejo na marcha galopante. Tinha força nas pernas grossas, mesmo com as ancas bamboleantes. Seguiu lenta, inda que dando pistas de seu rumo. Não foi para avenida Cruz Cabugá, com medo de sofrer um tropeção. Alcançou os fundos da Câmara e andou pelo passeio na lateral livre do prédio. Não foi para a frente, vestiu a camiseta vermelha sobre o vestido azul e encostou-se na esquina; encolhida para não ser vista.
Com pouco mais de sessenta anos, inda que aparentando ter setenta nas costas abauladas. O vestido, um tailleur caboclo, sem o casaco, cobrindo os ombros, metade dos braços e tão comprido que não se via um palmo das pernas abaixo dos joelhos. A singularidade do traje chamou a atenção da estudante, de cabelos tão ruivos quanto sua camiseta e a bandeira balouçante. Com pernas curtas e ágeis, voltou para o banco onde estivera sentada. Por certo movida pela energia, e por ter cedido a prerrogativa de usar o assento, insistiu com a mulher:
- Hoje é dia de usar vermelho!
Sem poupar o riso febril no rosto sardento, tirou um adesivo pequeno, dos muitos que tinha no tiracolo pendurado no ombro; tirou-o e colou-o no vestido da mulher, acima do peito. Pasma, meio tonta, a sexagenária reagiu como alguém que quer se livrar de um incômodo percevejo.
- Mas a senhora disse que vai votar em Dilma...!
- Mas não quero que ninguém saiba.
- A senhora sabia que nesta praça cem mil pessoas aplaudiram Carlos Prestes num comício?
- Quem é Carlos Prestes?
- O Cavaleiro da Esperança.
- Ele não está aqui não!?
- Ele já morreu.
- E agora?
- Agora, Dilma é a esperança.
- Essa festa toda só por causa de uma mulher.
- Não é só por causa de uma mulher. É porque a vida vai mudar pra todo mundo, até pra senhora. De onde a senhora é?
- De Panelas de Miranda. Lá tem muita terra e pouca gente plantando.
- E isso que pode mudar.
Formou-se um reboliço a dez metros dali. Um crioulo retinto, de olhos vivazes, fazendo uso do pragmatismo sem retórica, anunciou a distribuição de camisetas vermelhas. A estudante correu para perto, conseguiu uma camiseta e trouxe para a mulher.
- Tome.
A mulher dobrou-a, segurando-a entre as mãos sobre o regaço.
- Vista agora!
- Não. Só quando chegar em casa.
Ao lado das duas, o homem da carrocinha de sorvete, usando camiseta vermelha, instalou uma bandeira da mesma cor, na bandeja da carrocinha. Instalou-a e aumentou o preço do sorvete, para tirar proveito da festa vermelha.
O alto-falante, por fim, anunciou a presença de Dilma Rousseff ao lado de Lula. A multidão correu para a frente da Câmara Municipal. O sorveteiro também se pôs em disparada. O céu do Recife, o do centro, fechou-se com a cor chumbosa do fim da tarde. Difícil mesmo era perceber que a sombra densa acima das cabeças, era um envoltório blindado a chuvas e trovões. Não se viam nomes, inda que sorvessem o fôlego espectral de Cristiano Cordeiro, Gregório Bezerra, Diógenes Arruda, Pelópidas Silveira e Miguel Arraes.
A mulher do vestido azul viu-se só, sem a interlocutora de presença fugaz. Quis seguir o cortejo na marcha galopante. Tinha força nas pernas grossas, mesmo com as ancas bamboleantes. Seguiu lenta, inda que dando pistas de seu rumo. Não foi para avenida Cruz Cabugá, com medo de sofrer um tropeção. Alcançou os fundos da Câmara e andou pelo passeio na lateral livre do prédio. Não foi para a frente, vestiu a camiseta vermelha sobre o vestido azul e encostou-se na esquina; encolhida para não ser vista.
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