Marco Albertim, no Vermelho
O caminhão estacionara
ainda escuro. Antes que a manhã despontasse, haveria tempo para descarregar os
bichos, levá-los à feira, expô-los em linha reta em todo o quarteirão. Não
haveria perigo de perder o lugar, inda que houvesse concorrência para ocupar os
espaços vizinhos nas duas esquinas, onde a freguesia entrava curiosa para a
escolha de marrãs de quartos cheios ou galinhas de sobrecu pelado.
Antônio Prelado informara-se antes da meia-noite,
de que os caminhões carregados de bichos, vindos do sertão de Alagoas,
estacionariam sob o teto largo e comprido, de zinco, do balcão junto ao posto
de gasolina. Dormiu para relaxar o costado e as pernas; de cima a baixo, sentia
os membros tensos e o vazio do estômago. Junto do posto, no restaurante, não
conseguira desviar os olhos do pernil de porco na estufa do balcão; já cortado,
por isto mesmo soltando vapores de gordura, incitando o apetite moderado de
comedores eventuais, e o de famintos... Não demorara no exame, virara o rosto
para se urdir mordendo, sem cálculo, um naco chorudo dentro de um pão com a
crosta alta, soltando assobios entre os seus dentes.
Os faróis do primeiro caminhão a estacionar,
distinguiram-no deitado junto ao único paredão do galpão, nos fundos. Fizera do
tiracolo um travesseiro, levantou-se dobrando o corpo olhando para o paredão e
enfiou o lençol no tiracolo. Deixou a bagagem no extremo do paredão, para
mostrar que, apesar do espreguiçamento do corpo, restava-lhe força para dar
conta da ocupação parida pelo orvalho seco do sertão de Salgueiro.
Viu os homens descendo com habilidade própria, dos
garajaus de madeira à grade do caminhão, depois para o chão de terra nua, fria
àquela hora. Rumou para o mais próximo, ignorando o motorista que descera e
encostara-se a uma das colunas altas, de madeira, do balcão.
- Posso ajudar? – perguntou com os olhos meio
fechados, para esconder a sonolência.
- Tá disposto...?
- Tô aqui pra trabalhar.
- Suba no caminhão. Arreie os garajaus que eu
indicar.
Antônio Prelado subiu, sentiu que as costas se
alongavam, relaxando o seu tronco. Não quis saber ou não se preocupou em
distinguir cada um dos bichos dentro dos garajaus; alçou-os com as duas mãos,
descendo-os com os braços esticados para baixo, onde os homens os recolhiam. Na
noite muda da rodovia fora da cidade, ouviu o guincho das marrãs, o esperneio
de cabritos e o choque de galinhas e perus com as asas abertas. Em seguida
desceu. Os garajaus foram transportados para veículos menores, caminhonetes; dali,
levados para a feira.
O feirante que aceitara a mão de obra de Antônio
Prelado, advertiu-o:
- Ainda vai ficar mais garajau. Conforme o
movimento, a gente vem buscar. Pode-se confiar em você para tomar conta...?
- Pode. O senhor pode me adiantar um dinheiro?
Ainda não comi.
Do meio da noite à madrugada, o pernil de porco
ocupara-se dos sonhos erradios de Antônio Prelado. Agora, tinha-o refém de seus
dentes, convencendo-o de que não se livrara da habilidade de trinchar fatias de
marrãs assadas, inda que sem acordos nos tamanhos.
Subiu para dormir no estrado livre de garajaus, na
carroceria do caminhão. O motorista não fora à feira, jantara no restaurante
olhando para a televisão e se recolhera num dos quartos da hospedaria do mesmo
estabelecimento.
Os feirantes voltaram no fim da tarde. Recolheram
no caminhão os garajaus vazios de bichos; toda a bicharada fora vendida na
feira de Salgueiro. Antônio Prelado voltou a ajudá-los. Comeu numa mesa à
parte, com inveja daqueles homens com pernas e braços desproporcionais às
cabeças miúdas, mas corados nas maçãs dos rostos.
Subiu com eles para a viagem rumo ao sertão vizinho
de Alagoas. Antes que se aboletasse, o motorista pediu sua carteira de
identidade para certificar-se de que não transportaria um passageiro com
tenções hostis. Em Palmeira dos Índios, fim do percurso. Depois que todos
desceram, o motorista inquiriu:
- Quem vai pagar a passagem desse moço? Neste
caminhão ninguém viaja de graça.
Os feirantes se cotizaram e pagaram a passagem de
Antônio Prelado. Era madrugada. O caminhão estacionara numa praça meio escura,
no centro de Palmeira dos Índios. Cada um seguiu para sua casa. Antônio Prelado
caminhou para um posto de gasolina, com estacionamento para caminhões; dali
seguiria para Maceió.
Nenhum comentário:
Postar um comentário