Fernando
Henrique e a soprano careca
Rogério Cezar
Cerqueira Leite, na Folha de S. Paulo, janeiro de 2003
O finado teatro do absurdo foi inaugurado com a peça “A
Soprano Careca”, de Eugène Ionesco, autor que, em uma série de obras publicadas
nos anos 50 e 60, expõe, por meio de um conjunto de fórmulas antilógicas e
surrealistas, o absurdo das convenções sociais e a futilidade da vida moderna.
Uma de suas peças menos conhecidas é “Medéia”, personagem da mitologia grega,
retomada sucessivamente por Eurípedes, Sêneca, Corneille e Anouilh, que encarna
o mais sanguinário ciúme. Na peça do teatrólogo maldito, Medéia está só no
título, a ação se resume num crescente desconforto dos personagens devido a um
defunto, talvez de um parente, que cresce continuamente. Aos poucos, o corpo
passa a ocupar toda a sala. Os membros superiores e inferiores já se estendem
através dos demais cômodos, os pés invadem o jardim. A advertência da farsa
eloquente, ao menos a um nível primário concreto, é de que convém enterrar o
defunto o mais cedo possível, antes que cresça demais, tornando-se impossível
de carregar.
No
plano econômico, em oito gloriosos anos, o PIB per capita brasileiro ficou
estagnado. A inflação foi mantida em patamares satisfatórios, é verdade. Mas
foi à custa do crescimento da dívida pública e da dívida externa até níveis
insuportáveis. Os juros são os mais altos do mundo, o que liquidou muitas
pequenas e médias indústrias. O desemprego explodiu. A indústria e o comércio
se desnacionalizaram em grande medida. E, não obstante, Fernando Henrique foi
um grande presidente.
A
infra-estrutura do país por pouco não desmorona. Falta de planejamento e opções
equivocadas quase levam o país a um desastre energético. A privatização no
setor, em vez de criar uma desejável concorrência, gerou aumentos insuportáveis
de preços, evidente cartelização e nichos dos mais desavergonhados casos de
nepotismo e corrupção. O saneamento básico foi negligenciado, as estradas
federais foram abandonadas. Portos foram entregues a grupos corruptos, estradas
de ferro foram sucateadas. E, apesar disso, Fernando Henrique foi um grande
presidente.
No
plano social, a violência cresceu gravemente. Não é preciso recorrer a
estatísticas para demonstrar esse fato incontestável. As bonecas do Ipea estão
se esforçando para demonstrar um suposto avanço do Índice de Desenvolvimento
Humano. Bulhufas. Na realidade, o aumento desse índice se deve sobretudo a um
de seus componentes, a escolaridade, que é responsabilidade de Estados e
municípios, não da União. Além disso, a política de promoção compulsória do
aluno, imposta pelo MEC, contabiliza alunos que são propulsionados
automaticamente pela burocracia, não a melhoria ou a ampliação do ensino, o que
desqualifica o conceito de escolaridade para o Brasil. Da mesma forma, a
redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida são, em sua
maior medida, responsabilidade e consequência de administrações estaduais e
municipais. Prova disso é o fato de que essas melhorias ocorrem em medidas
bastante variadas em diferentes Estados e municípios. Além do mais, certa
melhoria deveria ocorrer vegetativamente, como consequência da evolução tecnológica
na área da saúde e do aumento da circulação de informação na mídia, o que pouco
ou nada teve a ver com o governo federal. E, mesmo assim, Fernando Henrique foi
um grande presidente.
Um
grande sucesso da era FHC teria sido, por outro lado, na área da saúde, a
introdução dos medicamentos genéricos. Todavia a triste realidade é que esse
programa não proporcionou a menor ampliação do acesso ao medicamento pela
população de baixa renda, pois não houve aumento de consumo. A razão é que os
aumentos sucessivos de preços, ocorridos desde o início da administração FHC,
suplantaram a diferença de preços entre os medicamentos de referência e os
genéricos. Corrigidos pela inflação, os preços dos genéricos são hoje
superiores aos preços dos seus respectivos medicamentos de referência há oito
anos. Ademais, a abertura do mercado para fármacos e medicamentos causou um
aumento de 500% nas importações e o fechamento de cerca de 450 unidades de
produção no Brasil. De fato, houve um programa humanitário que beneficiou os
portadores do HIV, 0,005% da população brasileira, à custa do abandono dos
programas relativos às endemias que afligem cerca de 20% da população. Todavia
Fernando Henrique foi um grande presidente.
Das
várias reformas – administrativa, fiscal, política, previdenciária etc. –, só a
primeira foi tocada, e, assim mesmo, superficialmente. O professor FHC chama a
si a responsabilidade pela evolução política do país. “O coronelismo foi
derrotado”, diz. Se o foi ou não, nada teve a ver com sua administração, que
aprimorou à perfeição o toma-lá-da-cá e se associou aos mais retrógrados
feudos, de ACM a Amazonino, de Jaime Lerner a Jader Barbalho. Aliás, um dos
mais vergonhosos episódios desses gloriosos oito anos foi a negociata para
derrotar o honesto e lúcido senador Peres na disputa pela presidência do Senado
com Jader Barbalho, operação orquestrada por FHC, que não poderia deixar de
conhecer o currículo de seu candidato. Outro resultado dessa atitude conivente
da Presidência foi a sequência de escândalos. O caso Sivan, o Proer e o
bloqueio da CPI, a compra de votos para passar a reeleição, a putrefação do
DNER, o grampo do BNDES e o envolvimento pessoal do presidente no favorecimento
de grupos, o caso Sudan, o Banpará, a Sudene, o enigma EJ etc. Se os escândalos
vieram a público, isso ocorreu devido ao arrojo e à perseverança dos promotores
federais e estaduais, com a ajuda da mídia, não por ação do Executivo. Este,
aliás, sempre se opôs às investigações. Mas Fernando Henrique foi um grande
presidente.
Mas
é em outro campo que reside o maior prestígio de FHC. “Um estadista”, dizem!
Foi até recebido para um café da manhã por Clinton! E por Bush. Uau, que
presidente brasileiro já teria alcançado tal distinção? Mas, para ser tão bem
recebido, é preciso ser um presidente conveniente. Só o Sivan, segundo Clinton,
gerou 20 mil empregos nos EUA e ainda manteve sob controle americano a
Amazônia.
A
legislação de patentes brasileira constitui uma rendição incondicional a
oligopólios estrangeiros. Rio Branco foi um estadista porque expandiu nossas
fronteiras. FHC, se o foi, deveu-se às concessões permissivas, para não dizer
entreguistas, que fez aos EUA. Mas Fernando Henrique foi um grande presidente.
Se não o foi, temos de reconhecer que não houve na história do Brasil um melhor
ator, um maior ilusionista farsante – digno de uma farsa de Ionesco.
Leia mais sobre temas da atualidade:
http://migre.me/kMGFD
Nenhum comentário:
Postar um comentário