Ilustração: Portal Vermelho
A ascensão do
fascismo
Jessé Souza, Jornal GGN
Todo
fascismo é reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de modo
distorcido e por conta disso violento e irracional no seu cerne. A elite e a
alta classe média haviam, com sucesso, legitimado a opressão das classes
populares pelo moralismo seletivo da corrupção apenas do Estado e da política
como forma de criminalizar a soberania popular. Os “belgas”, que se vem como
estrangeiros na própria terra, oprimiram o “Congo”, ou seja, o próprio povo, e
o reduziram á pobreza e á ignorância. O ódio ao escravo se transformou
simplesmente em ódio ao pobre. O escravo negro é eternizado nas massas
majoritariamente mestiças com escolaridade precária condenadas ao trabalho
desqualificado e semiqualificado. Esta é a base primeira de todo o ódio e
ressentimento reprimido e recalcado que é o núcleo da sociedade brasileira. O
fascismo implícito sempre foi o DNA da opressão de classes entre nós. O que tem
que ser explicado, portanto, é como ele contaminou as próprias classes
populares.
A
ascensão do partido dos trabalhadores, com todas as suas limitações, foi uma
inflexão importante no processo de organização popular. Com o golpe de
2013/2016 a reação conservadora veio primeiro de cima, da alta classe média nas
ruas, da sistemática corrosão de valores democráticos diariamente perpetrada
pela imprensa, e do acanalhamento do STF e por consequência da constituição. O
governo Temer promoveu o saque e a rapina que a elite queria e empobreceu o
povo que havia experimentado uma pequena ascenção social. Foi dito a este povo
que a corrupção política havia sido a causa do empobrecimento. Quando a
corrupção dos partidos de elite fica óbvia a todos, sem ser reprimida, todo o
sistema perde representatividade. O golpe de misericórdia foi a prisão injusta
do líder das classes populares desmobilizadas. Aqui o último elo de expressão
racional da revolta popular foi cortado.
Abriu-se a
partir daí a porta para a revolta agora irracional das massas. Neste contexto a
ocasião faz o ladrão. A belíssima marcha do “ele não”, majoritariamente composta
pelas mulheres da classe média mais crítica e engajada, possibilitou a
cooptação do voto feminino das classes populares, última cidadela contra a
“ética da virilidade” do fascismo popular. Aqui entra em cena o que há de mais
sujo na política das “fake News” e da mentira institucionalizada. Analistas de
ultradireita da campanha fascista, que perceberam as consequências do
isolamento político dos indivíduos que é o que capitalismo financeiro
representa na esfera política, se aproveitaram impiedosamente deste fato para
oporem mulheres emancipadas da classe média contra as mulheres pobres e
evangélicas.Se você é pobre e humilhada o ganho emocional que a distinção moral
construída artificialmente com relação a mulheres supostamente “indecentes”
exerce, por meio de mentiras que não podem ser desmentidas, passa a ter um
apelo irresistível. É uma “vingança de classe”, obviamente distorcida e contra
a fração errada da classe média, como escape em relação à pobreza vivida
diariamente, mas cujas causas não são compreendidas.
Como
já discuti no meu livro “A ralé brasileira”, contracorrente, 2017, a oposição
pobre honesto versus pobre delinquente perpassa os mais pobres dificultando
enormemente qualquer solidariedade de classe. Daí também a importância de
líderes políticos que os representem a partir de cima e secundarizem a
contradição interna de classe com uma política de interesse de todos os pobres.
Era isso que Lula representava. Sem isso a porta fica aberta para a guerra de
classe entre os próprios miseráveis divididos entre os supostos honestos e
supostos delinquentes como definidos pelas elites.
É
aqui que a “ética da virilidade”- ou seja, a ética dos que não tem ética – do
fascismo reina absoluta. O fascismo arregimenta a partir de cima os
ressentimentos, medos e ansiedades sem explicação possível e os canaliza a
“bodes expiatórios” externos. O antipetismo é apenas o mais óbvio. Mas todo
fascismo usa e abusa da sexualidade reprimida das classes populares. A
homossexualidade que não pode ser admitido em si mesmo é canalizado em selvagem
agressão externa e o ódio a mulher percebida como ameaça incitam a uma
agressiva regressão a padrões primitivos de relações de gênero. O pobre não é
apenas pobre. Ele é humilhado e dominado por valores construídos para subjuga-lo.
Isso confere ao fascismo enorme capilaridade e contamina a vida familiar e
relações de vizinhança em todos os níveis da sociabilidade popular.
O
líder fascista sem discurso e sem argumentos é o profeta exemplar perfeito das
massas destituídas em todas as dimensões da vida. Sem organização hierárquica
como os nazistas alemães, o nosso é um fascismo miliciano, capilarizado e sem
controle. O que é necessário explicar ao povo de modo compreensível é porque
ele ficou mais pobre. Sem isso se pavimenta o caminho ao ódio
irreversível.
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