Seguro morreu de
velho
Cícero
Belmar*
Existem pessoas pacientes e existe
Karlinha. Minha amiga, colega de profissão, fina e bem educada, parece ter sido
instruída na Suíça. Esse exemplar da etiqueta e dos bons modos recebeu um
telefonema naqueles dias em que os números da pandemia da Covid-19 transformavam
o Recife no inferno de Dante.
–
Boa tarde!
–
Aqui é Alberto, da empresa (***). Sou um especialista em vida.
Karlinha riu, pensando se
tratar de algum amigo, com zoação. Afinal, quem não sabia que ela andava aflita
com os noticiários que mostravam o quanto a morte era tangível neste momento
obscuro?
Reagiu,
com bom humor:
–
Que bom! Precisamos mesmo ter mais cuidado com a vida.
– Estou lhe telefonando porque
o meu objetivo profissional é oferecer uma oportunidade para tornar melhor a
vida das pessoas.
Até aí ainda pensava ser
um trote. Em tom de brincadeira, respondeu, imitando a voz daquele com quem
falava:
–
Senhor, deve estar havendo um engano.
O
interlocutor, com voz grave:
–
Não é engano. Estou falando com a senhora Karla?
Percebeu
que não era uma pegadinha.
–
Sou eu mesma.
–
Então, senhora, falando mais objetivamente…
– Senhor, por gentileza, fale o
que deseja. Estou trabalhando em home office.
–
Senhora, eu ajudo pessoas a resolverem desafios financeiros.
Com certeza, ele a escolheu
pelo perfil de consumo, a partir dessas listas do serviço de telefonia.
– Senhor me desculpe. Mas não
pretendo pedir dinheiro emprestado a financeiras.
Ora
bolas, por que não se cadastrou no site “Não me perturbe”, da Anatel?
– A senhora já vai entender.
Não trabalho para uma financeira, mas vendo apólices de seguros.
–
Seguros?!
– Exatamente. Há de convir que
eles são de grande importância neste momento de pandemia.
Karlinha se questionou por um
segundo: as seguradoras agora ofereciam especialistas em vida? Por isso,
continuou a conversa, por curiosidade de jornalista:
–
Apólice de seguros?!
–
Sim, perfeitamente. O seguro ideal para cada cliente.
–
Agora entendi. O senhor é um corretor de seguro.
– Prefiro ser visto com um
especialista que se dedica a proteger a vida dos clientes.
Ela,
mantendo a fleuma:
–
Realmente, não preciso de seguros. Vou desligar. Muito obrigada.
Karlinha,
já sabemos, é paciente, refinada e jamais bateria o telefone.
– Senhora, pense bem. Os
seguros são essenciais. A qualquer momento pode haver uma mudança significativa
na sua vida.
Perplexa:
–
Mudança significativa, nesta época de pandemia?!
O
vendedor, para ganhar tempo:
– A senhora entende. Falo de
uma mudança nefasta. E nesse caso… a senhora não vai querer deixar os seus
entes queridos…
–
O senhor está sugerindo que eu posso morrer?
– Estou dizendo que todos
devemos estar preparados para uma eventualidade. E eu sou a pessoa certa para
encontrar a proteção do futuro de sua família. O seguro pode pagar até R$ 200
mil.
Era um bom dinheiro, sem
dúvida. Mas, se ela fosse a defunta, não precisaria desse valor.
–
Senhor, não insista, muito obrigada mesmo.
–
Por favor, me dê uma oportunidade. Eu tenho uma meta diária a bater…
Para não ser grosseira, teve a
súbita e milagrosa ideia de apelar para uma “inverdade” . Até por que ela
mesma não acreditava naquilo que iria dizer:
– Senhor, não vou querer o seguro
porque não pretendo morrer tão cedo. Sabe o que tenho estocado em casa?
Cloroquina e ivermectina.
Ele,
entusiasmado:
–
Jura?! Então a senhora acredita nas mesmas coisas que eu!
Daí para frente ficou fácil a
conversa e Karlinha não precisou aderir ao seguro de vida. Nesse caso, vamos e
venhamos, foram a cloroquina e a ivermectina que a salvaram. Literalmente.
Depois,
ela me telefonou:
–
Até onde vai essa pandemia que compete com a da Covid-19?
Hoje, os números da pandemia
estão em baixa no Recife. Saudáveis, Karlinha, o marido e o filho riem do
telefonema e fazem planos para aproveitar o bom da vida.
*Cícero Belmar é escritor
e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e
livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
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