16 agosto 2020

Uma crônica para descontrair

Seguro morreu de velho
Cícero Belmar*


Existem pessoas pacientes e existe Karlinha. Minha amiga, colega de profissão, fina e bem educada, parece ter sido instruída na Suíça. Esse exemplar da etiqueta e dos bons modos recebeu um telefonema naqueles dias em que os números da pandemia da Covid-19 transformavam o Recife no inferno de Dante.
– Boa tarde!
– Aqui é Alberto, da empresa (***). Sou um especialista em vida.
Karlinha riu, pensando se tratar de algum amigo, com zoação. Afinal, quem não sabia que ela andava aflita com os noticiários que mostravam o quanto a morte era tangível neste momento obscuro?
Reagiu, com bom humor:
– Que bom! Precisamos mesmo ter mais cuidado com a vida.
– Estou lhe telefonando porque o meu objetivo profissional é oferecer uma oportunidade para tornar melhor a vida das pessoas.
Até aí ainda pensava  ser um trote. Em tom de brincadeira, respondeu, imitando a voz daquele com quem falava:
– Senhor, deve estar havendo um engano.
O interlocutor, com voz grave:
– Não é engano. Estou falando com a senhora Karla?
Percebeu que não era uma pegadinha.
– Sou eu mesma.
– Então, senhora, falando mais objetivamente…
– Senhor, por gentileza, fale o que deseja. Estou trabalhando em home office.
– Senhora, eu ajudo pessoas a resolverem desafios financeiros.
Com certeza, ele a escolheu pelo perfil de consumo, a partir dessas listas do serviço de telefonia.
– Senhor me desculpe. Mas não pretendo pedir dinheiro emprestado a financeiras.
Ora bolas, por que não se cadastrou no site “Não me perturbe”, da Anatel?
– A senhora já vai entender. Não trabalho para uma financeira, mas vendo apólices de seguros.
– Seguros?!
– Exatamente. Há de convir que eles são de grande importância neste momento de pandemia.
Karlinha se questionou por um segundo: as seguradoras agora ofereciam especialistas em vida? Por isso, continuou a conversa, por curiosidade de jornalista:
– Apólice de seguros?!
– Sim, perfeitamente. O seguro ideal para cada cliente.
– Agora entendi. O senhor é um corretor de seguro.
– Prefiro ser visto com um especialista que se dedica a proteger a vida dos clientes.
Ela, mantendo a fleuma:
– Realmente, não preciso de seguros. Vou desligar. Muito obrigada.
Karlinha, já sabemos, é paciente, refinada e jamais bateria o telefone.
– Senhora, pense bem. Os seguros são essenciais. A qualquer momento pode haver uma mudança significativa na sua vida.
Perplexa:
–  Mudança significativa, nesta época de pandemia?!
O vendedor, para ganhar tempo:
– A senhora entende. Falo de uma mudança nefasta. E nesse caso… a senhora não vai querer deixar os seus entes queridos…
– O senhor está sugerindo que eu posso morrer?
– Estou dizendo que todos devemos estar preparados para uma eventualidade. E eu sou a pessoa certa para encontrar a proteção do futuro de sua família. O seguro pode pagar até R$ 200 mil.
Era um bom dinheiro, sem dúvida. Mas, se ela fosse a defunta, não precisaria desse valor.
– Senhor, não insista, muito obrigada mesmo.
– Por favor, me dê uma oportunidade. Eu tenho uma meta diária a bater…
Para não ser grosseira, teve a súbita e milagrosa ideia de apelar para uma “inverdade” . Até por que ela  mesma não acreditava naquilo que iria dizer:
– Senhor, não vou querer o seguro porque não pretendo morrer tão cedo. Sabe o que tenho estocado em casa? Cloroquina e ivermectina.
Ele, entusiasmado:
– Jura?! Então a senhora acredita nas mesmas coisas que eu!
Daí para frente ficou fácil a conversa e Karlinha não precisou aderir ao seguro de vida. Nesse caso, vamos e venhamos, foram a cloroquina e a ivermectina que a salvaram. Literalmente.
Depois, ela me telefonou:
– Até onde vai essa pandemia que compete com a da Covid-19?
Hoje, os números da pandemia estão em baixa no Recife. Saudáveis, Karlinha, o marido e o filho riem do telefonema e fazem planos para aproveitar o bom da vida.
*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

Resistir de humor elevado é preciso https://bit.ly/2XgnENa

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