10 agosto 2020

Nas encruzilhadas da vida


Eu nem queria divulgar mais nada. As coisas boas que pudesse dizer sobre meu pai já foram ditas no correr desses longos anos. Seria melhor então substituí–las pelas coisas boas que pudesse dizer dos meus filhos, já agora dos meus netos, porque eles simbolizariam o futuro e é no futuro que se aninha a esperança.

Mas essa crnica que visualiza meu pai e se inspira num momento dramático das nossas vidas me pareceu tão forte, tão nascida das entranhas que inevitavelmente se mostram em dias assim, que eu achei ser meu dever de filho divulgá–la. Só para dizer, meu velho, que nossos impulsos de comunicação mal iniciados, nossos silêncios indefinidos, nossos papos interrompidos, explodem hoje num clarão de serenidade!.

Não houve como evitar essa explosão Ela nasce dum canto recôndito, bem encolhido no fundo do meu coração. Até à vista, pai! Eu até hoje me recrimino por não ter sabido amá-lo na dimensão e intensidade que o senhor merecia! (C.A).


Crônica de uma saudade crônica
Chico de Assis

“Você é um filho ruim, um filho ruim” – disse-me o velho em seu delírio, enquanto eu tentava conter seu corpo magro em minhas mãos, para impedir-lhe de levantar em meio a noite, uma rara noite em que não suportei ficar acordado e o encontrei quase de pé, descendo do leito do hospital público onde estava internado, recuperando-se de uma parada cardíaca.

Era a segunda noite que passava a seu lado naquele hospital (antes se encontrava em hospital particular, com assistência completa, mas valendo os olhos da cara e o médico amigo que o havia atendido na situação de emergência dissera-me convicto, vocês vão ficar só de cuecas, para cobrir as despesas e provavelmente não vão conseguir, se ele ficar por aqui para o período de recuperação, que imagino no mínimo de vinte dias).

Sugeriu então que o transferíssemos para um da rede pública, onde ele cuidaria de garantir-lhe o essencial e o essencial incluía acompanhamento para as noites. Por ser o único da família em condições de fazê-lo, já que as irmãs, casadas, com filho ou marido para cuidar, não dispunham de tempo naquele horário, eu ali estava, depois de um cochilo que não consegui evitar, acalmando o velho aos poucos, calma papai, calma papai, é para o seu bem, até vê-lo acalmar-se de fato e quase sem forças balbuciar ainda, “um filho ruim”, antes que a enfermeira chegasse e o pusesse de volta a cama, para uma lavagem, é o que está incomodando-o, o intestino funciona lentamente e ele se enche de gases, é normal, vamos cuidar disso.

Eu voltei ao beliche onde antes me encontrava, emocionado com o incidente, recriminando-me por não haver conseguido evitar a sonolência, e pensando no que faz essa aproximação, ditada inicialmente pelo sangue e depois pelo convívio, seja qual seja, sendo o meu com o velho marcado por altos e baixos, eu deveria dizer baixos e altos, porque haveria de assinalar duas etapas bem distintas, a primeira compreendida no período de infância e adolescência, quando ele era apenas uma sombra severa, que não se mexia em manifestações de carinho e apenas acompanhava o que julgava essencial acompanhar, como vão os estudos dele? passou de ano? por que vive sempre na rua?

A segunda fase, na idade adulta, quando foi uma rocha de paciência e solidariedade, acompanhando-me em todos os percalços da longa prisão política a que fui submetido e esse acompanhamento implicava participação em rituais que o enchiam de vergonha, como a submissão às revistas impostas para que pudesse entrar como visita. Ele aceitava resignado o que lhe parecia uma humilhação, ele um homem de bem, fiel cumpridor dos seus deveres, sendo apalpado pelos esbirros policiais, que com o tempo foram até compreendendo a inutilidade da tarefa, aquele velhinho tão cordial não merecia tratamento tão extemporâneo e o foram deixando incólume, o senhor fica ai no quarto alguns minutos, depois sai, não vamos mais revistá-lo.

Suportaria tudo, contanto pudesse usufruir das horas permitidas ao lado do filho, embora não conseguissem os dois expressar em palavras o que estivessem sentindo e se limitassem a lacônicos comentários, e a vida como vai?, ele perguntava, bem, bem, eu respondia, estamos começando a arrumá-la, mas aqui há tempo pra tudo.

[Ilustração: Ramon Casas Carbó]
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