09 outubro 2020

Quem não escuta, nada sabe

Sabe tudo, sabe nada

Luciano Siqueira

 

O verdadeiro sábio nunca diz que sabe. Li isso em algum lugar ainda na adolescência.

E sempre tive como uma referência.

Mais ainda para mim mesmo, que em minha timidez jamais vencida nunca me arvoro em dizer que sei das coisas, mesmo quando de fato sei...

No curso médico da antiga Faculdade de Medicina da UFPE, convivi com um colega que nos irritava a todos com a sua obsessão pelas notas máximas. Quando não fosse dez, que atingisse 9 e meio ou nove. Abaixo disso, jamais!

- Quero ser o laureado da turma, dizia.

Chegava a perder o controle emocional quando, por raríssimas ocasiões, em alguma prova, escrita ou oral ou prática, atingisse algo em torno de 8 e 9.

Estudava antes as matérias programadas e mal o professor iniciava sua exposição se antecipava em dizer “isso já sei”.

Muitos de nós também nos antecipávamos às aulas, mas nenhum tinha essa petulância.

- La vem nosso “Dr. Isso já sei”, me dizia em voz baixa meu amigo-irmão Zé Carlos Souto (já falecido, competente psiquiatra) quando via o dito cujo nos corredores do velho Hospital Pedro II.

Depois percebi que diante de um paciente o “Dr. Isso já sei” mal sabia se conduzir. Impaciente na anamnese, impreciso no exame físico, sobretudo na ausculta cardíaca.

Ou seja: na ânsia de cumprir bem a tabela, acertar as questões nas provas, pouco se dedicava à propedêutica e à compreensão da complexidade das patologias com as quais lidávamos no ambulatório ou nas enfermarias.

Faltava-lhe uma qualidade essencial ao bom médico: olhar o paciente nos olhos, ouvi-lo com atenção, examiná-lo com perícia.

Os anos passaram, o perdi de vista.

Até que um dia o encontrei no Aeroporto de Guarulhos, junto com outro colega da época.

- Quanto tempo, Luciano! A gente tem notícias suas pelos jornais...

- Prazer enorme rever vocês.

- Pois é. Lembra do nosso colega que tudo sabia?, enquanto o próprio se dirigia a uma lanchonete em busca de um cafezinho para os três.

Arrisquei o comentário:

- Passaram-se tantos anos, nosso amigo aí já baixou a bola?

- Nunca! Pegou o vício e em tudo por tudo mal nos ouve e sempre acha que sabe tudo! Trabalhamos juntos.

- Sabe muito, então.

- Para ser sincero, acho que sabe a teoria, mas na prática continua inseguro e confuso. É péssimo em diagnostico diferencial.

Tomamos o cafezinho conversando sobre futebol, os dois apaixonados pelo Sport, eu um tímido adepto do Náutico, habituado a perder.

Nada mais se falou do passado, nem da medicina.

Seguimos voos distintos.

Guardei na memória que o colega que pensava saber tudo ainda hoje sabe pouco ou quase nada. A presunção o impede de ouvir. E quem não ouve, nada sabe.

Um toque de leveza e bom humor https://bit.ly/2XgnENa  

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