Retrato das injustiças no acesso à energia elétrica
A pobreza
energética no país: 40% dos brasileiros têm contas de luz atrasadas.
Ficar no escuro ou comer tornou-se dilema. Falta de energia afeta mais regiões
com maioria negra. Entre os mais pobres, principal uso é para conservar
alimentos
Karina Tarasiuk, na Agência Pública
Quando recebeu a conta de energia de R$ 600, Jandria Catia
Rodrigues Vieira, de 38 anos, estava com um bebê recém-nascido e não tinha um
centavo. “Eu quase entrei em depressão. Falei: vou fazer o quê? Se o dinheiro
não dá nem para alimentar os meus filhos, eu vou pagar a conta de luz?”, conta
a moradora do Jardim da União, na zona sul de São Paulo.
Assim
como ela, uma parcela cada vez maior de brasileiros têm enfrentado dificuldades
para pagar a conta de luz que hoje consome ao menos metade da renda de 46% das famílias do país. Um mapeamento do
Instituto Pólis, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade,
mostra que a distribuição de energia nos domicílios pelo país segue um padrão
de raça e classe.
Ou
seja, as regiões onde há menor acesso à energia e maior duração de interrupção
no fornecimento são também as regiões com predominância de população negra e de
baixa renda. São também áreas onde o consumo de energia é menor. O estudo
“Justiça energética nas cidades brasileiras, o que se reivindica” tomou como
base dados do acesso à energia elétrica e ao saneamento básico em três cidades
brasileiras: Rio Branco (AC), Rio de Janeiro (RJ) e Maceió (AL).
A pesquisa mostra que nas famílias com renda de até dois
salários-mínimos a maior parte da energia é usada para a conservação de
alimentos. Já em famílias com renda de dez salários-mínimos, a maior parte da
energia elétrica é direcionada para a climatização do ambiente.
Jandria, por exemplo, usa a energia apenas para o essencial e possui
poucos equipamentos elétricos: geladeira e chuveiro. Mesmo com o consumo baixo,
a conta é desproporcional à renda da família. “Tem dia que eu não posso comprar
nem fralda pro pequenininho”, conta.
Essa
situação tem um nome: pobreza energética, que ocorre quando um indivíduo tem
limitações tecnológicas, físicas ou econômicas no acesso à energia. Entre as
limitações físicas, está a falta de energia elétrica proveniente de companhia
distribuidora e com medidor com uso exclusivo. Isso ocorre principalmente nas
regiões de favelas — onde, vale ressaltar, a maioria da população é negra e
há maior concentração de
mulheres chefes de família com renda de até um salário-mínimo, como o Instituto Pólis
mapeou no relatório.
No
Rio de Janeiro, apenas 67% dos domicílios nas regiões periféricas possuem
energia elétrica proveniente de companhia distribuidora, observa o estudo. Nos
33% dos domicílios restantes, a energia vem de outra fonte e pode ter qualidade
inferior e menor estabilidade.
Em
Maceió, a realidade é ainda mais crítica: apenas 52% das residências em favelas
têm energia fornecida pela concessionária, enquanto 48% têm acesso ao serviço
por outros meios. Os dados são parecidos em Rio Branco: 57% das residências em
favelas possuem acesso à energia elétrica fornecida pela distribuidora, ante
43% dos domicílios que têm o acesso de outra maneira.
“O
não acesso [à energia] ocorre em razão da negligência do Estado em garantir o
direito à energia para as famílias que residem em assentamentos informais”,
explica o relatório. Ainda segundo o estudo, quando esses domicílios têm acesso
à energia elétrica, o serviço é deficiente. “Tal situação resulta em inúmeras
famílias submetidas a viver no escuro, no calor, sem alimentos refrigerados
adequadamente e com banhos gelados.”
Participante
do Movimento Luta Popular e moradora da Ocupação dos Queixadas, em Cajamar, na
região metropolitana de São Paulo, Vanessa Mendonça conta que a ocupação possui
apenas três anos e o acesso à energia elétrica é totalmente irregular. Sua
principal preocupação é a segurança. “Você depender de gatos, de gambiarra,
para garantir iluminação é perigoso”, diz ao citar riscos como acidentes e
incêndios. Hoje, a comunidade luta pelo direito ao acesso regular à energia.
Mas
para a população de baixa renda, a regularização da energia elétrica não
garante seu acesso na prática. Rodolfo Gomes, diretor executivo da ONG
International Energy Initiative Brasil, defende que, para encontrar dados reais
sobre quem está na situação de pobreza energética, não se pode considerar
apenas as pessoas que não têm acesso a redes de eletricidade. Segundo ele, uma
coisa é ter eletricidade em casa, outra, o seu uso. “A eletricidade é cara,
compromete boa parte do orçamento dessas pessoas. Tem uma qualidade baixa,
muitas vezes tem muita oscilação da energia, muita interrupção de
fornecimento”, explica. “A pobreza energética é uma das dimensões da pobreza.”
Quatro em cada dez famílias têm a conta de
energia atrasada
Cerca
de quatro em cada dez famílias brasileiras estão inadimplentes. Segundo a
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), 39,43% das famílias
atrasaram a fatura por pelo menos um mês em 2021. Nubia Santana, de 42 anos,
também moradora de Jardim da União, está dentro dessa estatística. Ela mora
sozinha em um barraco de madeira e está desempregada há três anos. Está há
quatro meses sem pagar a conta.
Leia também: Em
padaria visitada por Bolsonaro durante a pandemia, pessoas pedem alimentos para
conseguir o que comer https://bit.ly/3dJapQI
Ela
não usa ferro de passar, trocou as lâmpadas por modelos mais econômicos e diz
que procura tomar banhos rápidos. Mesmo assim, a conta é alta demais para a
renda que obtém com bicos irregulares e com o auxílio mensal de sua filha para
comprar alimentos. Se Nubia pagar a conta, não come.
“Um
dado que nos marcou bastante é que 22% dos brasileiros estão tendo que deixar
de comprar alimentos básicos para pagar a conta de luz”, diz a pesquisadora
Amanda Ohara, do Instituto Clima e Sociedade, que no começo do ano realizou um
levantamento sobre o peso da energia na renda
dos brasileiros.
Além
dos 22% que afirmaram diminuir a compra de alimentos básicos, 40% das famílias
ouvidas pela pesquisa relataram diminuir ou deixar de comprar roupas, sapatos e
eletrodomésticos e 14% deixaram de pagar outras contas básicas, como as de água
e gás encanado para conseguir pagar a conta de luz.
Com
o aquecimento global e as ondas de calor, itens que até então poderiam ser
considerados de luxo, como ventilador e ar-condicionado, tornam-se cada vez
mais essenciais. Essenciais, porém inacessíveis para a maior parte da
população, que mal consegue pagar uma conta de energia com gastos básicos.
Autora
do estudo “The multidimensionality
of energy poverty in Brazil: an historical analysis”, que identificou que
ao menos 11,4% dos domicílios brasileiros sofrem de pobreza energética, a
pesquisadora Paula Bezerra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
destaca que a injustiça energética se propaga nessa situação porque as
necessidades básicas de energia não são atendidas.
“As
limitações financeiras vão além do quanto a pessoa pode pagar por mês para
suprir a energia. Aí também tem a questão dos equipamentos que ela tem que
usar”, diz. “Se a gente está falando, por exemplo, de um país quente como o
Brasil, uma pessoa que não tem acesso a um aparelho como ventilador,
ar-condicionado está numa situação em que ela está exposta, ela está vulnerável
termicamente.”
Além
da climatização, existe um uso ainda mais importante da energia, que é a
refrigeração de alimentos. O relatório do Instituto Pólis aponta que uma forma
de as famílias de baixa renda reduzirem o gasto energético seria trocar as
geladeiras por modelos mais eficientes.
Mas
essa população já tem toda a sua renda voltada para gastos com habitação e
serviços e necessidades básicas, “o que a impede de arcar com a compra de
refrigeradores mais eficientes, ainda que a longo prazo isso resultaria em uma
economia de renda”, conclui o estudo.
Mais térmicas, conta mais cara
Um
dos motivos do atual aumento da conta de luz é a crise hídrica de 2021. Com a
escassez de água, o Estado investiu mais em termelétricas, que são uma fonte
mais cara, principalmente por conta do combustível que é utilizado.
No
ano passado, o governo colocou todo o parque termelétrico do Brasil operando em
tempo integral por seis meses. “Foi um impacto brutal”, diz Ricardo Baitelo,
gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), ao explicar
que a energia produzida por usina termelétrica pode ter um custo duas a dez
vezes maior que a produzida por eólicas e hidrelétricas. “O combustível [tem]
um custo extra, que não está incorporado no projeto, não está incorporado nas
tarifas que todo mundo paga. Então é você ter que fazer uma nova conta.” E
nessa nova conta quem paga o gasto é o público consumidor.
No
Brasil, 60% da energia vem de fontes hidrelétricas. A eólica e a solar estão em
segundo e terceiro lugar, respectivamente, com cerca de 10% do uso cada. “É uma
participação significativa”, diz Baitelo. “Mas, comparado ao potencial que elas
poderiam ter, ainda é muito menor. O Brasil não precisaria estar nessa situação
de energia cara.”
Uma alternativa apresentada pelo estudo do Instituto Pólis para superar
a atual condição de pobreza energética é adotar um regime de tarifas
progressivas, que pode reduzir em 59,3%, em média, os gastos dos brasileiros
mais pobres com a conta de luz. “A ideia é que a diferença de custos seja
compensada com um pequeno aumento nas contas dos demais consumidores, de
maneira proporcional ao seu consumo”, explica a pesquisa. “Ou seja, quem
consome mais passa a pagar um pouco a mais.”
O mecanismo de tarifa progressiva, defendem os pesquisadores,
favoreceria a justiça energética e também estimularia um consumo mais
consciente de energia entre os consumidores das classes média e alta. “O modelo
também corrige uma distorção do atual sistema de tarifas adotado no país, uma
vez que os consumidores residenciais que usam mais energia exigem uma
infraestrutura de rede muito superior à necessária para o atendimento dos
consumidores de baixa renda, que, em geral, usam pouca energia”, aponta o relatório.
Falta de acesso à energia em regiões
isoladas
O
que foi visto até aqui são famílias que não têm condições de pagar a conta de
luz. A energia chega até suas residências, mesmo com qualidade menor,
interrupções e preço muito além da renda familiar. Mas existem locais com
limitações físicas — a energia nem chega lá.
Dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019 indicam que mais
de 141 mil domicílios brasileiros não têm acesso à energia. O valor, no
entanto, é subestimado, pois desconsidera famílias que moram em regiões remotas
— principalmente no Norte do país.
Na
Amazônia Legal, 990 mil pessoas não têm acesso à energia elétrica,
segundo estudo do Iema publicado
em novembro de 2019.
Esse
estudo mostrou que 19% da população que vive em Terras Indígenas na Amazônia
não tem acesso à energia elétrica. O número chega a 22% entre os que vivem em
Unidades de Conservação.
O
principal motivo desse isolamento energético é que, enquanto no resto do país
as regiões são atendidas pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), que fornece
energia elétrica a partir das redes de transmissão, na Amazônia Legal
predominam os sistemas isolados, que têm um alcance menor.
A
maior parte dos sistemas isolados utiliza geradores movidos a diesel para gerar
energia elétrica. São sistemas que possuem elevados custos de geração, baixa
eficiência e elevada necessidade de manutenção. Eles exigem uma logística
complexa de transporte do combustível e emitem gases de efeito estufa.
A
falta do acesso à energia elétrica torna os povos amazônicos ainda mais
excluídos. Para Arthur Baiochi, pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor (Idec), “o acesso à energia elétrica não só é muito importante
para resiliência desses povos como também [a falta do acesso] os deixa em uma
situação de vulnerabilidade muito complicada”. Principalmente pela dificuldade
em acessar meios de comunicação, como televisão e internet. Ele citou o exemplo
da pandemia, durante a qual as redes de comunicação foram importantes para
divulgar informações e desmentir notícias falsas.
Leia também: A inconclusa
Independência do Brasil https://bit.ly/3L08lQk
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