'Mito'
Movimentos
fascistas costumam se escorar na farsa do 'escolhido por Deus'
Fábio Tofic Simantob
Advogado criminalista, é mestre em direito penal
pela USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCrim)
Folha de S. Paulo
Apesar
de Jair Bolsonaro ser
filho da velha política, o fenômeno bolsonarista não é. O fenômeno nasce a
partir da ideia de "mito",
que em nada condiz com a do medíocre deputado federal que fora até 2018. É a
ideia de "mito" que o catapulta ao posto mais importante da
República.
Sucede
que "mito é uma narrativa", escreve o professor Everardo Rocha na
sua contribuição para a coleção "Primeiros Passos", da Editora
Brasiliense, na década de 1980. Prossegue ele: "O mito não fala diretamente,
ele esconde alguma coisa (...) O mito é uma coisa inacreditável, algo sem
realidade, é uma mentira; sua verdade, consequentemente, deve ser procurada num
outro nível, talvez outra lógica".
Bolsonaro
mais de uma vez se disse escolhido por Deus para
presidir o Brasil. Os movimentos de cunho fascista costumam se ancorar nessa
premissa. Usam termos que remetem a uma escolha divina, a um poder ancestral.
Por isso seus líderes recebem designações como mito, "führer",
"duce".
Em
uma obra pouco conhecida ("Aspectos do Drama Contemporâneo"), que
analisa aspectos psicológicos do fenômeno do nazismo na Alemanha, Carl Jung considera
que a sociedade foi acometida por uma epidemia psíquica a partir do momento em
que o inconsciente coletivo do povo alemão foi capturado por Hitler e seus
asseclas.
Leia
também: Sete em dez brasileiros temem ser alvo de agressões por causa de suas
escolhas políticas https://bit.ly/3qOwkJc
Jung traça um perfil psicológico de Hitler,
considerando-o uma manifestação simbólica do antigo deus germânico Wotan.
De
fato, ninguém melhor do que um representante de Deus para conseguir dialogar
com os demônios que a razão não consegue dominar. As formas racionais e
pacíficas de solução de conflitos são encaradas como covardia e permissividade,
típicas de um homem fraco, rendido às peias do comunismo cultural.
Daí
a repulsa desses movimentos a tudo que vem da ciência e da razão. Tudo que
tenta racionalizar e de alguma forma aplacar as manifestações puras que brotam
da alma são tentativas de manipular a mente do povo.
Os movimentos fascistoides são contra o que Bolsonaro e seus
seguidores gostam de chamar de "intelectualismo". Preferem a
superfície dos sentimentos primitivos às construções do pensamento filosófico
que, ao longo dos séculos, sedimentaram os valores da civilização.
Em "Minha Luta",
Hitler atacava o bolchevismo judaico, ao mesmo tempo em que acusava os judeus
capitalistas americanos de quererem dominar o mundo (uma cópia fajuta de "Os Protocolos dos
Sábios de Sião", talvez a primeira fake news do mundo moderno). Ou seja, teses
absolutamente contraditórias, que não operavam com a razão, nem com a lógica, e
muito menos com a verdade, mas com o ódio ancestral do povo alemão pela imagem
de um judeu medieval que só existia em seu inconsciente atávico. O judeu alemão
era uma minoria insignificante, já em grande parte assimilada à sociedade
alemã.
Bolsonaro toca no mesmo diapasão.
Acusa empresários de globalistas por financiarem causas sociais e progressistas
mundo afora —como é o caso de George Soros,
mais de uma vez alvo de ataques de filhos do presidente em redes sociais.
Assim
como a Alemanha e o mundo eram vítimas de um plano judaico para dominar o planeta,
agora é a vez de progressistas —banqueiros ou sindicalistas, jornalistas ou
políticos, não importa— serem acusados de usar métodos sub-reptícios para
capturar todos os âmbitos da vida nacional. Vão se infiltrando na imprensa, nas
universidades e nas escolas porque querem conquistar tudo com sua ideologia
pagã. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
As
pessoas tendem a achar que o que define o nazismo é Auschwitz.
Auschwitz foi o nazismo levado às últimas consequências. O nazismo, como
fenômeno político, pode se reproduzir em maior ou menor grau em outros momentos
e outros lugares, ainda que sem a violência do nazismo alemão.
Se
é verdade que a história se repete como farsa, Bolsonaro é o produto mais bem
acabado dessa história —ou dessa farsa, se preferirem.
Leia
também: Milícias não são Estado paralelo, propagam-se por ele, na
promiscuidade entre polícias e grupos paramilitares https://bit.ly/3DGHSWk
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