Fentanil, a morte no mar morno
O Brasil é alertado em vão contra
a ameaça do opioide que mais provoca mortes por overdose nos EUA
Ruy Castro/Folha de
S. Paulo
Nos anos 1980 e 1990, a imprensa brasileira publicou dezenas de artigos sobre a epidemia do crack em Nova York e a possibilidade de sua chegada ao país. Foram ignorados por todos os governos daqueles anos. O crack chegou primeiro a São Paulo, e só não se espalhou de saída por outras praças porque não convinha às facções que ainda tinham controle sobre elas. Não por qualquer prurido, mas por razões comerciais —o crack é barato e inviabiliza o usuário, donde era melhor continuar a vender cocaína. Mas, por razões de escrita contábil, o PCC obrigou o Comando Vermelho carioca e as facções de outros estados a incorporá-lo ao seu cardápio. Rara hoje a cidade brasileira sem pelo menos uma cracolândia.
O
mesmo acontece agora com o fentanil. É um medicamento fabricado por importantes
laboratórios, indispensável para tratar a dor, mas já há tempos sintetizado
clandestinamente e vendido em massa para uso "recreativo". É de fácil
consumo: pode ser injetado, inalado, absorvido em adesivos ou por via oral na
forma de balas, pastilhas e até pirulitos.
O
fentanil "bate" quase no ato e seu efeito dura menos de uma hora, o
que induz a aplicações sucessivas e leva a um risco absurdo de dependência. E
que efeito é esse? Compare-o com o da morfina, seu parente mais próximo:
"A morfina espalha uma onda de relaxamento como se descolasse os músculos
dos ossos. Você se sente flutuando sem fronteiras, como se estivesse imerso num
mar morno".
Essa
romântica descrição, que poderia se aplicar também à heroína, é do escritor
americano William
Burroughs, autor de "O Almoço Nu" e entusiasta das drogas. Pois o fentanil é 50 vezes mais forte
que a heroína e 100 vezes mais que a morfina.
Desde
2018, o fentanil já é o campeão em mortes por overdose nos EUA. Não faltam
artigos na imprensa brasileira alertando sobre essa ameaça. Mas, com o
histórico desinteresse de nossos governos de qualquer cor política pela
prevenção às drogas, logo estaremos também contando as nossas baixas no mar
morno.
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