03 abril 2016

Regressão civilizatória

Quando a misoginia pauta as críticas ao governo Dilma
Capa sexista de 'IstoÉ' coroa momento em que o machismo é a regra para atacar presença de mulheres na política
Clarice Cardoso, na Carta Capital
O jornalismo político brasileiro está fora de controle, mas, se perguntado, dirá que loucas são as mulheres. O mais recente exemplo é a escolha de expressões publicadas na capa da revista semanal IstoÉ em chamada para reportagem que se propõe a denunciar a "perda de condições emocionais" da presidenta Dilma Rousseff para manter-se no governo. Lê-se:
"Em surtos de descontrole com a iminência de seu afastamento e completamente fora de si, Dilma quebra móveis dentro do Palácio, grita com subordinados, xinga autoridades, ataca poderes constituídos e perde (também) as condições emocionais para conduzir o País."
Fora de contexto, a frase passaria facilmente como sinopse das atividades da vilã Carminha, na novela Avenida Brasil. A comparação com a personagem não é esdrúxula, pois ilustra o estereótipo da mulher louca, que sob a pecha de histérica, converte-se em antagonista diante de uma plateia de homens desarmados. É apenas um dos incontáveis exemplos possíveis repetidos todos os dias por todo o Brasil.
Engana-se quem pensa que encontrará dados factuais nos milhares de caracteres agrupados nas páginas internas. A mais minuciosa das leituras terá dificuldades em encontrar um parágrafo com argumentação que possa ser levada a sério, denúncia devidamente apurada ou fonte de informações que tire o artigo da categoria dos mexericos. O que há são frases de pretensa ironia que resvalam sem pudor no preconceito de gênero.
Fontes apócrifas discorrem sobre surtos de mal comportamento, grosseria e destemperamento da presidenta nos últimos meses de crise política. "Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva do que nunca." Segue-se uma petulante comparação com a rainha Maria I, a Louca, uma forma de retórica que não abre espaço para debate.
Se observado de perto, o posicionamento editorial da "revista mais combativa do Brasil" mostra sinais curiosos. Durante a campanha eleitoral, divulgava pesquisas de intenção de voto de órgãos questionáveis e, depois, mostrou-se defensor do PMDB. No mais novo capítulo da crise, apelou para a misoginia.
Esse comportamento passa longe da mera defesa ou condenação de Dilma enquanto presidenta por um veículo jornalístico, algo em si legítimo. Expõe, no sentido mais amplo do termo, uma agressão a uma mulher em posição de poder que acaba se refletindo num ataque a todas as mulheres, estejam elas na política ou não.
Em ambiente tão inóspito, não é de se espantar a falta de representatividade feminina nas altas esferas do poder. As mulheres são mais da metade da população do país, mas ocupam apenas 63 das 594 cadeiras do Congresso Nacional, cerca de 10%.
Entre todas as polêmicas envolvendo este segundo mandato, o preconceito de gênero disfarçado de visão política une os dois polos. Enquanto os críticos ao governo se valem de expressões de baixo calão para pedir sua saída, o que foi repudiado pela ONU Mulheres, apoiadores enxergam na imagem do ex-presidente Lula, um homem, a solução para todos os problemas que circundam Dilma, algo exposto por Luiza Erundina
Há alguns meses, a mesma presidenta recebeu o conselho de "fazer mais sexo" de um jornalista publicado no site da revista Época, para quem a solução da crise seria se Dilma se apresentasse de forma "mais erotizada".
Na planilha da Odebrecht divulgada recentemente, a deputada estadual Manuela d'Ávila (PCdoB-RS) recebia o codinome "avião". Em caso de impeachment, o tradicional machismo brasileiro não correrá o risco de ficar sem alvo, e já circula nas redes sociais imagens que se referem de modo pouco elogioso a Marcela Temer, mulher do vice-presidente.
Não é o caso de dizer que essas situações não aconteceriam com políticos homens. Elas já não acontecem. É o caso de refletir os motivos pelos quais, na sociedade em geral, ataques às mulheres são em sua maioria direcionados à sexualidade feminina. São comentários e apelidos que circulam todos os dias na mídia e em rodas de conversa, conservadoras ou autodeclaradas progressistas.
Munido de jornalismo sério publicado por veículos que deixem claros seus posicionamentos, qualquer eleitor sensato consegue tirar conclusões e se posicionar por conta própria diante dos fatos da crise política, sem a necessidade de tutela de profissionais que escondem preconceitos atrás de seus crachás de imprensa. Parafraseando o texto da revista, não precisa ser psicanalista para perceber que, nos últimos meses, o jornalismo desmantelou-se profissionalmente.

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