Capa sexista de 'IstoÉ' coroa momento em que o
machismo é a regra para atacar presença de mulheres na política
Clarice Cardoso, na Carta Capital
O
jornalismo político brasileiro está fora de controle, mas, se perguntado, dirá
que loucas são as mulheres. O mais recente exemplo é a escolha de expressões
publicadas na capa da revista semanal IstoÉ
em chamada para reportagem que se propõe a denunciar a
"perda de condições emocionais" da presidenta Dilma Rousseff para
manter-se no governo. Lê-se:
"Em
surtos de descontrole com a iminência de seu afastamento e completamente fora
de si, Dilma quebra móveis dentro do Palácio, grita com subordinados, xinga autoridades,
ataca poderes constituídos e perde (também) as condições emocionais para
conduzir o País."
Fora
de contexto, a frase passaria facilmente como sinopse das atividades da vilã
Carminha, na novela Avenida
Brasil. A comparação com a personagem não é esdrúxula, pois ilustra
o estereótipo da mulher louca, que sob a pecha de histérica, converte-se em
antagonista diante de uma plateia de homens desarmados. É apenas um dos
incontáveis exemplos possíveis repetidos todos os dias por todo o Brasil.
Engana-se
quem pensa que encontrará dados factuais nos milhares de caracteres agrupados
nas páginas internas. A mais minuciosa das leituras terá dificuldades em
encontrar um parágrafo com argumentação que possa ser levada a sério, denúncia
devidamente apurada ou fonte de informações que tire o artigo da categoria dos
mexericos. O que há são frases de pretensa ironia que resvalam sem pudor no
preconceito de gênero.
Fontes
apócrifas discorrem sobre surtos de mal comportamento, grosseria e
destemperamento da presidenta nos últimos meses de crise política.
"Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais agressiva
do que nunca." Segue-se uma petulante comparação com a rainha Maria
I, a Louca, uma forma de retórica que não abre espaço para debate.
Se
observado de perto, o posicionamento editorial da "revista mais combativa
do Brasil" mostra sinais curiosos. Durante a campanha eleitoral, divulgava
pesquisas de intenção de voto de órgãos questionáveis e, depois, mostrou-se
defensor do PMDB. No mais novo capítulo da crise, apelou para a misoginia.
Esse
comportamento passa longe da mera defesa ou condenação de Dilma enquanto
presidenta por um veículo jornalístico, algo em si legítimo. Expõe, no sentido
mais amplo do termo, uma agressão a uma mulher em posição de poder que acaba se
refletindo num ataque a todas as mulheres, estejam elas na política ou não.
Em
ambiente tão inóspito, não é de se espantar a falta de representatividade
feminina nas altas esferas do poder. As mulheres são mais da metade da
população do país, mas ocupam apenas 63 das 594 cadeiras do Congresso
Nacional, cerca de 10%.
Entre
todas as polêmicas envolvendo este segundo mandato, o preconceito de gênero
disfarçado de visão política une os dois polos. Enquanto os críticos ao
governo se valem de expressões de baixo calão para pedir sua saída, o que
foi repudiado pela ONU
Mulheres, apoiadores enxergam na imagem do ex-presidente Lula, um
homem, a solução para todos os problemas que circundam Dilma, algo exposto por Luiza
Erundina,
Há
alguns meses, a mesma presidenta recebeu o conselho de "fazer mais
sexo" de um jornalista publicado no site da revista Época, para quem a
solução da crise seria se Dilma se apresentasse de forma "mais
erotizada".
Na
planilha da Odebrecht
divulgada recentemente, a deputada estadual Manuela d'Ávila (PCdoB-RS)
recebia o codinome "avião". Em caso de impeachment, o tradicional
machismo brasileiro não correrá o risco de ficar sem alvo, e já circula nas
redes sociais imagens que se referem de modo pouco elogioso a Marcela Temer,
mulher do vice-presidente.
Não
é o caso de dizer que essas situações não aconteceriam com políticos homens.
Elas já não acontecem. É o caso de refletir os motivos pelos quais, na
sociedade em geral, ataques às mulheres são em sua maioria direcionados à
sexualidade feminina. São comentários e apelidos que circulam todos os dias na
mídia e em rodas de conversa, conservadoras ou autodeclaradas progressistas.
Munido de jornalismo sério publicado
por veículos que deixem claros seus posicionamentos, qualquer eleitor sensato
consegue tirar conclusões e se posicionar por conta própria diante dos fatos da
crise política, sem a necessidade de tutela de profissionais que escondem
preconceitos atrás de seus crachás de imprensa. Parafraseando o texto da
revista, não precisa ser psicanalista para perceber que, nos últimos
meses, o jornalismo desmantelou-se profissionalmente.
Leia mais sobre
temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
Nenhum comentário:
Postar um comentário