Epidemia Narrativa no Jornalismo Econômico
Fernando Nogueira
da Costa, Jornal GGN
O
consumo das famílias brasileiras está ainda 2% abaixo do atingido no quarto
trimestre de 2014, quando atingiu seu máximo. Nos últimos cinco anos,
diagnostica a editora adjunta da redação do principal jornal econômico, “as
famílias, superendividadas, começaram um longo e penoso processo de
desalavancagem, juntamente com as empresas”. Mistura alhos (empresas
não-financeiras) com bugalhos (famílias).
A desalavancagem financeira das empresas ainda se processa. O
crédito à Pessoa Jurídica caiu de 22% do PIB em 2017 para 20% em 2019, enquanto
no mesmo período o crédito à Pessoa Física se elevou de 25,2% para 27,3% do
PIB. O comprometimento financeiro da renda das famílias não paralisou seu
consumo. Aumentou sim a cautela em relação ao futuro, porque o emprego formal
no setor privado da população ocupada caiu em termos absolutos de 2015 a 2018 e
só aumentou 0,93% em 2019. A queda da confiança atingiu até quem não ficou
desempregado, como os servidores públicos.
O PIB real per capita caiu 8,8% de 2014 a 2016. Houve perda de
massa salarial real entre 2015 e 2018 devido à não reposição inflacionária,
dado o menor poder de barganha sindical. Foram cortados direitos
previdenciários, obrigando assalariados e pejotizados de renda mais elevada
aumentarem as reservas financeiras. Esse fenômeno foi agravado pela menor
capitalização da renda fixa com a virtual zeragem dos rendimentos financeiros
reais. Logo, o consumo se mantém em um piso sustentado graça aos benefícios
sociais, inclusive a política de salários mínimos reais e as aposentadorias.
São ameaçados pela ânsia de combate da atual política de Estado mínimo à
“socialdemocracia”. Crescimento vegetativo é estagnação pela
falta de dinamismo.
Economistas ortodoxos pautam de maneira equivocada os
jornalistas. Apontam uma estagnação dos indicadores de produtividade, mas não
destacam essa ser uma constatação ex-post. Quando a
produção está em queda, evidentemente o resultado constatado é a queda da
produtividade por trabalhador. O ritmo de desemprego é inferior ao da queda do
volume produzido, por prevenção face ao custo de desempregar e depois
recontratar e dar novo treinamento. Produtividade registrada a
posteriori não depende a priori de
qualificação profissional dos trabalhadores, mas enfrenta sim a carência de
demanda efetiva. Indica um problema macroeconômico.
Em meados de 2019, segundo o CEMEC, o grau de cobertura das
despesas financeiras pela geração de lucro operacional, isto é, a relação
dívida financeira líquida / EBITDA das empresas de capital aberto, mesmo
desconsiderando a Petrobras devido ao seu peso, ainda estava em 1,91 (quase o
dobro), bem abaixo de 5,25 atingido em 2015, mas ainda sem baixar para o nível de
1,20 em 2010. Analisando a alavancagem dessas empresas abertas pela relação
dívida bruta / patrimônio líquido, ou seja, recursos de terceiros / recursos
próprios, nas mesmas datas, ela foi de 0,65 em 2010 para 1,04 em 2015 e no 2º
trimestre de 2019 tinha baixado para 0,87.
O retorno sobre capital era 15,7% e o custo do capital era 12,7%
em 2005. Após as decisões de investimento e endividamento, em 2010, suas
direções se inverteram, com o primeiro caindo para 11,2% e o segundo
elevando-se para 16,4% em 2015. Foi o pior momento, quando o custo do capital
para as empresas superou o retorno em 5,2 pontos percentuais (pp). No 2º
trimestre de 2019, havia ainda uma diferença de 1,4 pp: 11,8% contra 10,4%.
Caiu bem o custo, mas o retorno também caiu – e permanece inferior.
Há
também a
desalavancagem financeira do setor público. As despesas com juros
caíram abaixo de 5% do PIB pela primeira vez desde outubro de 2014 a partir do
corte muito atrasado da taxa de juro básica em agosto de 2019. Em 2015, quando
o juro estava 10 pp acima da Selic atual (4,25%), o governo geral gastou mais
de R$ 500 bilhões, praticamente 9% do PIB, com juros! Querem independência do
Banco Central do Brasil…
O investimento caiu do patamar de 20% do PIB em 2014 para 15% do
PIB desde 2016. Com a falta de dinamismo da absorção interna (consumo
+ investimento + gasto governamental), a esperança é colocada em exportação
líquida. Mas ela não reagirá à depreciação da moeda nacional em relação ao
dólar, por conta da queda da demanda externa. Já caiu 9% no último
trimestre de 2019. Com a desaceleração da economia mundial em geral e da China
em particular, por ser o epicentro do coronavírus, não se deve esperar o
crescimento brasileiro no comércio internacional.
O problema agora não é só a crise econômica da Argentina, mas a
quarentena da China. É disparada a maior parceira comercial do Brasil. O país
exportava 20% do total para ela em 2015. No ano passado, exportou 29%. Em
seguida, na ordem, vieram Europa (19%), América do Norte (17%, inclusive Estados
Unidos com 13%). América do Sul (12%, incluindo Mercosul com 7%), Oriente Médio
(5%), África (3%) e América Central (2%). A Ásia (inclusive a China) foi o
destino de 41% da exportação total.
O
efeito multiplicador de renda já atua no sentido negativo. As agências
brasileiras de turismo começaram a sentir o impacto da epidemia. Viagens de
negócios e de férias para a Europa, e até para ver a Olimpíada no Japão, estão
sendo canceladas, tornando mais difícil o cenário das companhias aéreas. Suas
ações despencam. O surto gripal deve provocar perda de receita de US$ 29,3
bilhões no setor aéreo global neste ano.
Provas
esportivas, como maratonas, e feiras de alimentos foram afetadas em todo o
arquipélago japonês. A liga de futebol profissional informou o adiamento de
partidas do campeonato nacional. Parques de entretenimento e restaurantes estão
sendo fechados.
As vendas de alimentos e bebidas foram prejudicadas pelo fechamento de bares e restaurantes na China, juntamente com o adiamento de eventos e a queda do turismo na Ásia. As montadoras anunciam as operações em suas fábricas de automóveis na China, Japão e Coréia do Sul estarem sendo afetadas por problemas da cadeia de suprimentos. Quebraram elos da cadeia global de valor. Despencam as vendas. No mercado de tecnologia, as Big Techs não conseguirão alcançar suas metas. No setor de mineração, a maior demandante mundial é a China. Já se registra a “recessão do coronavírus”.
As vendas de alimentos e bebidas foram prejudicadas pelo fechamento de bares e restaurantes na China, juntamente com o adiamento de eventos e a queda do turismo na Ásia. As montadoras anunciam as operações em suas fábricas de automóveis na China, Japão e Coréia do Sul estarem sendo afetadas por problemas da cadeia de suprimentos. Quebraram elos da cadeia global de valor. Despencam as vendas. No mercado de tecnologia, as Big Techs não conseguirão alcançar suas metas. No setor de mineração, a maior demandante mundial é a China. Já se registra a “recessão do coronavírus”.
Sem a compensar, a epidemia levou fabricantes brasileiros de
máscaras descartáveis e gel antisséptico a aumentar significativamente a
produção neste início de ano, antes mesmo do registro do primeiro caso de
Covid-19 no país. Houve um choque de demanda externa e, agora, esperam que
ocorra o mesmo no Brasil. O valor médio da caixa de 50 unidades de máscaras no
varejo dobrou de R$ 15 para R$ 30.
Mesmo as bandeiras de cartões de crédito diminuíram suas
perspectivas de receita. As interações pessoais em economia de mercado se dão
por dinheiro,
vírus – e narrativas!
Contágio é
a transmissão de uma doença de uma pessoa para outra por contato mediato
(indireto) ou imediato (direto). Refere-se também à imitação involuntária por
conta de absorção de uma narrativa comum: falta confiança no governo inerte. Constelação se
refere a um grupo de compartilhamento dessa estória, influenciando outros.
Quando duas ou mais narrativas são de certa forma coincidentes, há confluência
de opiniões.
A metáfora primária usada para narrar o estado de uma crise
econômica, dominante na mídia popular, é “a economia estar doente ou saudável”.
É como ela precisasse de um doutor-médico capaz de administrar a dose certa de
medicamento: política fiscal ou política de juros. Daí a mídia popular dá
manchetes escandalosas sobre um termômetro chamado “confiança”, medido por
diversos índices de confiança ou pelo Ibovespa.
O uso e o abuso
dessa expressão são tantos a ponto de economistas heterodoxos a ironizarem com
a metáfora “fada-madrinha da confiança”. Ela teria a varinha de condão para
tudo mudar em direção às expectativas otimistas dos empreendedores!
Analisando
os Indicadores de Confiança das Sondagens IBRE-FGV pós-golpe, o visto é uma
série de ondas. As medianas de Expectativas de Mercado, dada pela pesquisa
Focus do Banco Central, aponta também as tentativas-e-erros de propagandear uma
retomada do crescimento. É tipo um “agora vai” com alguma “reforma neoliberal
milagrosa” até um factoide reverter a propaganda enganosa: Joesley Baptista,
greve dos caminhoneiros, Brumadinho, Argentina, coronavírus…
Os peritos em previsões não falam com vozes discordantes. Todos
adotam a mesma narrativa epidêmica ao mesmo tempo. E o que dizem é quase sempre
errado. Na realidade, a Economia é uma Ciência Exata. Erra 100% das vezes!
Um dos motivos para essa aglomeração das previsões em torno de
certa narrativa consensual deriva da maioria delas basear-se apenas na
assimilação de peritos das opiniões e previsões de outros peritos. Não é
surpreendente assemelharem entre si.
A imprensa sempre consulta os mesmos notáveis e estes
intelectuais midiáticos só leem o próprio grupo ortodoxo, quando não as mesmas
fontes estrangeiras. Economistas desse grupo não respondem às perguntas porque
sabem qual é a resposta. Eles respondem simplesmente porque foram perguntados…
Para peritos do mercado financeiro, cujas reputações
profissionais podem estar em jogo, é sempre mais seguro cometer o mesmo erro
cometido por todos os colegas. Por isso, raramente se distanciam muito do
consenso narrativo. Mesmo quando os fatos e os dados desmentem suas previsões,
os peritos preferem insistir no diagnóstico, pois senão seriam “culpados”
individualmente de imperícia, em vez de se colocarem como “vítimas” de
acontecimentos coletivos inesperados.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP.
Autor de “Ciclo: Intervalo entre Duas
Crises” (2019; download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com
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