Os custos sociais de uma pandemia
Para antropóloga, coronavírus coloca em evidência problemas como desigualdade social e de gênero, e como lidamos com eles enquanto sociedade.
Matheus Souza,
portal Vermelho
Uma epidemia diz mais sobre nós mesmos do que
sobre a própria doença”, diz a pesquisadora Denise Pimenta. Para ela, que é doutora
em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, além da preocupação direta com a disseminação do novo coronavírus,
existe outra dimensão do problema que precisa ser olhada com atenção. Além de
uma questão de saúde, trata-se também de uma questão social, que atinge grupos
distintos de maneiras diferentes.
No Brasil, os primeiros sinais dessa
distinção foram a xenofobia e racismo contra pessoas de ascendência oriental,
que surgiram assim que começaram as notícias sobre os casos de covid-19 na
China. “Isso acontece porque enxergamos esse ‘outro’, o chinês, o não ocidente,
como distante de nós em vários sentidos, desde a raça até a cultura. Seus
hábitos são vistos como perigo”, explica Denise. “Da mesma forma, a questão com
os italianos é muito diferente. Quando a crise chega lá, por nos vermos como
mais próximos culturalmente deles, surge uma solidariedade seletiva, e também
aumenta o medo de que o problema chegue até nós.”
Em sua pesquisa de doutorado, a antropóloga
estudou como a crise do ebola atingiu Serra Leoa, na África, com recortes
claros de classe, raça e gênero. Em entrevista ao Jornal da USP, ela fala sobre
essas questões em meio à pandemia atual, que ajudam a entender os problemas
sociais complexos que vêm à tona em situações de emergência.
Quando o ebola atingiu o oeste da
África, entre 2013 e 2016, as mulheres foram consideravelmente mais afetadas
que os homens. Como Denise explica, isso ocorreu porque era reservado a elas o
papel de cuidar das vítimas, deixando-as mais vulneráveis para contrair a
doença. Com o coronavírus, ainda que de modo geral os sintomas sejam menos
graves, o peso continua maior do lado delas.
“São
as pessoas que, quando as aulas forem canceladas, vão ficar em casa para cuidar
das crianças. É uma carga emocional, psíquica e física colocada nas mulheres,
principalmente as mais pobres”, diz.
Denise
acrescenta ainda que é comum, em períodos de isolamento forçado por causa de
epidemias, um aumento nos índices de violência doméstica, assim como de
gravidez na adolescência. “Nós vivemos numa estrutura de desigualdade e
violência contra a mulher. Se passamos por um momento em que as famílias estão
confinadas na mesma casa, no mesmo apartamento, essa violência também cresce.”
Entre os idosos, principal grupo de risco e
cujos casos de covid-19 são mais fatais, também há consequências subjetivas que
podem passar despercebidas. Em alguns países da Europa, por exemplo, a
visitação a asilos foi suspensa, e o mesmo já
ocorre em alguns estabelecimentos brasileiros. Ainda que vise à segurança, a medida acaba também por
isolar uma população já marcada por solidão e desamparo.
Outro fator presente durante a
crise do ebola em Serra Leoa foi a relação das pessoas com a morte, a
importância do luto e de ritos culturais para se despedirem dos entes queridos.
Para a pesquisadora, esse também é um tema ainda pouco comentado agora, em
parte pelo índice menor de fatalidade com o coronavírus. Porém, nos locais em
que a situação já chegou em nível mais crítico, a questão já começa a aparecer.
E,
enquanto um dos destaques na cobertura midiática é a oscilação das bolsas de
valores pelo mundo, o impacto econômico também chega rápido às classes mais
baixas, sobretudo para quem depende de empregos informais ou temporários. Além
de estarem sujeitos a uma diminuição grande de renda se não puderem trabalhar,
também não têm garantias trabalhistas que cubram casos de doença. “O operariado
sofre as maiores consequências”, diz Denise.
Além
disso, ela alerta que em muitos países o momento atual pode significar também
um perigo à ordem democrática e aos direitos humanos. O surto de ebola teve
como efeito colateral a militarização da saúde pública, com o Estado praticando
excessos justificados com o discurso de garantir a proteção sanitária e segurança
do país. Nas comunidades mais pobres e em áreas de risco, tornou-se corriqueira
a presença do exército fazendo vistoria nas casas para levar embora possíveis
infectados, sem maiores esclarecimentos, o que por vezes fazia com que
perdessem o contato com suas famílias.
A antropóloga faz ainda uma leitura
mais ampla de como o surto de coronavírus mostra questões do nosso tempo. Para
ela, a crise torna evidentes problemas muito característicos do estágio atual
do sistema capitalista. “No Brasil, a epidemia chega num momento em que o
sistema público de saúde vem sendo desmantelado, assim como a previdência
social. Ela vai descortinando como essas políticas neoliberais, de
privatização, terceirização, cortar direitos dos trabalhadores, podem
prejudicar seriamente uma população.”
A
situação traz ainda sinais das disputas ideológicas que correm no mundo. Isso é
evidente em algumas das informações falsas que têm circulado envolvendo o
vírus, como que ele teria sido criado propositalmente na China, ou
o boato de que já havia uma vacina disponível em Cuba.
Nesses casos, o pano de fundo é um embate entre diferentes projetos políticos e
econômicos.
A
disseminação de boatos também diz respeito ao modo como as pessoas estão
lidando com o problema, é uma resposta ao medo. Outra reação aparece na forma
de piadas, que também circulam com rapidez na internet já
há algumas semanas. “Muitas pessoas ficam incomodadas com isso, mas também é
preciso entender que rumores, jocosidade, são formas de as pessoas lidarem com
o fenômeno e dar inteligibilidade a ele.”
A
pesquisadora acrescenta que a antropologia, e as ciências sociais como um todo,
são importantes para compreender os aspectos menos diretos que envolvem o
cenário atual: “A pandemia vai passar, mas todas essas questões continuam”. (Fonte: Jornal da USP)
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