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Apresentara-se
como "antigo colega de colégio". Na juventude, até jogara futebol
no mesmo time do vice-prefeito — referência que indicava algum engano, uma
vez que nossa experiência com o futebol de várzea nunca foi além de peladas
informais e esporádicas. Mas, uma imprecisão assim, a certa altura da vida,
todos cometem; não haveria de ser impeditiva para a solicitada audiência. Entra
na sala todo sorriso, exultante até: - E aí,
amigo velho, como andas? Muito trabalho, hein? Bem que disse a Julieta,
lembra dela?, mandou um abraço para você, bem que disse a ela que o amigo não
esqueceria da gente! - Pois
é, a gente nunca esquece... - sem lembrar nem do próprio, muito menos da
mencionada Julieta, mas já antevendo tratar-se de mais um daqueles diálogos
nada confortáveis. Não deu outra. - Como
ia dizendo, amizade de verdade é assim, a gente não esquece. Por falar nisso,
vim aqui porque tenho uma filha, quer dizer, uma sobrinha que é mesmo que ser
filha, mora com a gente desde os nove anos, que fez o concurso para a Guarda
Municipal e ainda não foi chamada... - Que
classificação ela obteve? -
Classificação? Sabe que eu não perguntei. Nem sei se ela foi mesmo aprovada,
mas como dizem que neste mundo quem tem padrinho vai a Roma, sabe como é,
pensei que o amigo, em nome dos velhos tempos, pudesse dar um empurrãozinho
na minha sobrinha... -
"Empurrãozinho"? Como assim? - Um
jeito de ela ser chamada, a coitada anda tão triste, queria muito ser da
Guarda! -
Francinaldo (chamemos assim o suposto velho amigo), esse
"empurrãozinho" não é possível. A lei é clara, são admitidos os que
foram aprovados no concurso, pela ordem decrescente de classificação. Desde a
Constituição de 88 é assim, para ingressar no serviço público o caminho é o
concurso. Além disso, não seria ético, não acha? Nem coerente, pois lutamos a
vida toda para moralizar os concursos... - De
acordo, amigão, não quero atravessar o samba, quer dizer, a lei. Mas dizem
que há sempre um jeitinho... - Se
há, aqui não é, Francinaldo. Temos que respeitar a lei, compreenda. - Não
se preocupe, eu compreendo. Mas, aproveitando, não tem como arranjar um
estágio remunerado para o irmão da minha sobrinha, que estuda na Escola
Técnica? -
Infelizmente, não. Estágios estão suspensos temporariamente por contenção de
gastos e dependem de uma indicação do CIEE ou do IEL, onde ele precisa se
inscrever previamente. - E uma
casa, dessas que os jornais dizem que a Prefeitura está construindo para os
mais carentes? O amigo sabe, tenho uma boa aposentaria do Banco do Brasil, a
Julieta tem uma lojinha lá em Casa Amarela, dá para levar a vida. Mas seria
tão bom que o amigo conseguisse uma casa para a minha sobrinha... (Não
teve casa, nem estágio, nem ingresso atravessado na Guarda Municipal, nem
tempo para que o suposto velho amigo pudesse desfiar toda a sua lista de
pedidos. A eficiente secretária cuidou de interromper o diálogo que pelo
visto seria interminável, entre o gestor público que se sente no dever de
exercitar, nesses casos, toda a paciência do mundo e o cidadão que,
reproduzindo a cultura da classe dominante, entende que o Estado existe para
atender suas necessidades pessoais, e não à coletividade). . Tema político, veja: Quem
avisa que vai melar o jogo com tanta antecedência bom sujeito não é https://bit.ly/2TUCwlA |
A construção coletiva das idéias é uma das mais fascinantes experiências humanas. Pressupõe um diálogo sincero, permanente, em cima dos fatos. Neste espaço, diariamente, compartilhamos com você nossa compreensão sobre as coisas da luta e da vida. Participe. Opine. [Artigos assinados expressam a opinião dos seus autores].
21 julho 2021
Uma crônica de 2004 #blogdelucianosiqueira15anos
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