21 julho 2021

Uma crônica de 2004 #blogdelucianosiqueira15anos


 

Diálogo nada confortável
Luciano Siqueira

 

Apresentara-se como "antigo colega de colégio". Na juventude, até jogara futebol no mesmo time do vice-prefeito — referência que indicava algum engano, uma vez que nossa experiência com o futebol de várzea nunca foi além de peladas informais e esporádicas. Mas, uma imprecisão assim, a certa altura da vida, todos cometem; não haveria de ser impeditiva para a solicitada audiência.

Entra na sala todo sorriso, exultante até:

- E aí, amigo velho, como andas? Muito trabalho, hein? Bem que disse a Julieta, lembra dela?, mandou um abraço para você, bem que disse a ela que o amigo não esqueceria da gente!

- Pois é, a gente nunca esquece... - sem lembrar nem do próprio, muito menos da mencionada Julieta, mas já antevendo tratar-se de mais um daqueles diálogos nada confortáveis. Não deu outra.

- Como ia dizendo, amizade de verdade é assim, a gente não esquece. Por falar nisso, vim aqui porque tenho uma filha, quer dizer, uma sobrinha que é mesmo que ser filha, mora com a gente desde os nove anos, que fez o concurso para a Guarda Municipal e ainda não foi chamada...

- Que classificação ela obteve?

- Classificação? Sabe que eu não perguntei. Nem sei se ela foi mesmo aprovada, mas como dizem que neste mundo quem tem padrinho vai a Roma, sabe como é, pensei que o amigo, em nome dos velhos tempos, pudesse dar um empurrãozinho na minha sobrinha...

- "Empurrãozinho"? Como assim?

- Um jeito de ela ser chamada, a coitada anda tão triste, queria muito ser da Guarda!

- Francinaldo (chamemos assim o suposto velho amigo), esse "empurrãozinho" não é possível. A lei é clara, são admitidos os que foram aprovados no concurso, pela ordem decrescente de classificação. Desde a Constituição de 88 é assim, para ingressar no serviço público o caminho é o concurso. Além disso, não seria ético, não acha? Nem coerente, pois lutamos a vida toda para moralizar os concursos...

- De acordo, amigão, não quero atravessar o samba, quer dizer, a lei. Mas dizem que há sempre um jeitinho...

- Se há, aqui não é, Francinaldo. Temos que respeitar a lei, compreenda.

- Não se preocupe, eu compreendo. Mas, aproveitando, não tem como arranjar um estágio remunerado para o irmão da minha sobrinha, que estuda na Escola Técnica?

- Infelizmente, não. Estágios estão suspensos temporariamente por contenção de gastos e dependem de uma indicação do CIEE ou do IEL, onde ele precisa se inscrever previamente.

- E uma casa, dessas que os jornais dizem que a Prefeitura está construindo para os mais carentes? O amigo sabe, tenho uma boa aposentaria do Banco do Brasil, a Julieta tem uma lojinha lá em Casa Amarela, dá para levar a vida. Mas seria tão bom que o amigo conseguisse uma casa para a minha sobrinha...

(Não teve casa, nem estágio, nem ingresso atravessado na Guarda Municipal, nem tempo para que o suposto velho amigo pudesse desfiar toda a sua lista de pedidos. A eficiente secretária cuidou de interromper o diálogo que pelo visto seria interminável, entre o gestor público que se sente no dever de exercitar, nesses casos, toda a paciência do mundo e o cidadão que, reproduzindo a cultura da classe dominante, entende que o Estado existe para atender suas necessidades pessoais, e não à coletividade).

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Tema político, veja: Quem avisa que vai melar o jogo com tanta antecedência bom sujeito não é https://bit.ly/2TUCwlA

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