Artigo publicado n'Globo, que me parece aborda aspectos válidos dos impasses em que o bolsonarismo mergulha agora. (LS)
Bolsonaristas perderam ilusão de falar pelo povo
Grupo será obrigado a se
reinventar, não apenas como oposição, mas também com a amarga suspeita de ser
uma minoria
Pablo
Ortellado, O Globo
As mobilizações
bolsonaristas têm mostrado resiliência, com ações de protesto sustentadas por
um período bastante estendido, mas também vêm perdendo apoio. Isso não apenas
deixa os bolsonaristas radicais isolados, como tem consequências políticas para
a estratégia populista do grupo.
Quando
analisamos a evolução do levante antipetista, na sua duração mais longa, chama
a atenção como a identidade política vai mudando de uma rejeição a rótulos, nas
primeiras mobilizações contra Dilma Rousseff em 2015-2016, para uma afirmação entusiasmada das
identidades de “direita” e de “conservador”, que surgem com força na campanha
de 2018.
Estudos têm mostrado
que, na tradição histórica do populismo, prevalece a rejeição das identidades
políticas. O líder populista típico não se diz nem de esquerda nem de direita,
justamente porque pretende representar integralmente o povo contra as elites
corruptas. O bolsonarismo concilia seu populismo com a adoção orgulhosa do
rótulo de “direita”, identificando a esquerda com as elites culturais e
políticas. Essa opção, porém, tem um risco. Ao adotar uma identidade de
direita, há um reconhecimento tácito de que a comunidade política está dividida
em duas partes, com a esquerda constituindo a outra metade.
Se essa adoção de uma
identidade já tinha aberto uma pequena rachadura na visão de mundo populista, o
abandono da camisa da seleção escancarou o problema.
Desde 2015, o
antipetismo adotou como uniforme a camisa da seleção brasileira. A amarelinha,
que muitos brasileiros tinham na gaveta, é um forte símbolo de união nacional —
talvez o mais poderoso. Ao adotá-la como uniforme político, os antipetistas, e
em seguida os bolsonaristas, conseguiam representar o ideal populista de uma
maneira simples e direta: a multidão na rua era o povo — a manifestação falava
por todos os brasileiros, inclusive por aqueles que, por preguiça ou inércia,
tinham ficado em casa.
Nesse período heroico, que
vai de 2015 a 2018, o antipetismo sustentava a ilusão de que se havia forjado
uma comunhão nacional para sobrepujar e esmagar a minoria petista,
imaginariamente reduzida a pequenos grupos de corrompidos que — em troca de
Bolsa Família, recursos da Lei Rouanet ou pão com mortadela —
desavergonhadamente defendiam seus patrões.
Após a derrota eleitoral
em outubro, porém, tudo mudou. Em vez de aproveitarem a onda verde e amarela
trazida pela Copa do Mundo e sugerirem que o brasileiro orgulhoso da seleção de
Tite e os ativistas mobilizados nos quartéis eram um corpo só, muitos
bolsonaristas fizeram questão de se separar das massas, abandonando a camisa da CBF, adotando o verde-oliva e o preto como
uniforme. Identidade política e estratégia populista se chocaram. Nada poderia
ser mais sintomático da crise na capacidade de os bolsonaristas se apresentarem
como o povo, ou, pelo menos, como a vanguarda do povo.
Logo outros sinais
surgiram. Antes, os bolsonaristas, confiantes em sua estima pública, abraçavam
populares que demonstrassem simpatia, rapidamente incluídos no movimento.
Agora, suspeitam e rejeitam qualquer tipo de apoio vindo de estranhos.
Simpatizantes que tentaram doar alimentos nos acampamentos foram violentamente
rechaçados e acusados de tentativas de envenenamento com suas doações. O
bolsonarismo ficou sectário.
Os manifestantes
mobilizados nos quartéis estão agora visivelmente isolados. Isso não tem apenas
impacto no seu moral baixo, mas também fere de morte a capacidade do
bolsonarismo de sustentar um discurso populista do tipo “o povo contra as
elites”. Isso não significa que o bolsonarismo morrerá, mas mostra que será
obrigado a se reinventar, não apenas como oposição, mas também com a amarga
suspeita de ser uma minoria.
Suplantar a cultura do ódio é
uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
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