Como
os sambas de Carnaval desaceleraram e voltaram a falar sobre os temas do povo
Após anos de enredos
patrocinados e baterias metralhadoras, escolas miram memória afro-brasileira e
botam o pé no freio
Lucas Brêda/Folha de S. Paulo
Para o Carnaval de 2023, Mestre Ciça preparou um
andamento um pouco mais lento. Mestre de bateria há mais tempo em atividade no Rio de
Janeiro, ele —em conjunto com diretores e carnavalescos— puxou as
rédeas da bateria da Unidos do Viradouro, escola de samba conhecida
pela agilidade e pelo expressivo naipe de caixas, sob o apelido de Furacão
Vermelho e Branco.
"A bateria é pegada, mas com um andamento mais
confortável", diz Ciça. "Puxei um pouco para trás, para o samba poder
ser bem evoluído na avenida. Estou feliz pela cadência da bateria. É a proposta
da escola."
Vice em 2019 e campeã no
ano seguinte, a Viradouro volta à Sapucaí com
um desfile sobre Rosa Maria Egipcíaca, escravizada com dons espirituais que foi
a primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil. A escola canta a
"santa que o povo aclamou" por cima de um andamento que não passa de
144 BPM (batidas por minuto).
Essas são duas movimentações que vêm se intensificando nos
últimos carnavais —a redução do tempo de algumas baterias e a retomada de
enredos mais conectados com o povo, com destaque para o resgate da memória
afro-brasileira. Para Luiz Antônio
Simas, historiador e coautor do livro "Samba de Enredo:
História e Arte", essas são algumas das razões para uma melhora recente
nas safras de sambas-enredo.
"O Carnaval deste ano confirma uma tendência —um bom enredo
já é meio caminho andado para um bom samba", ele diz. "Houve um período
em que o samba de enredo realmente estava por baixo. Tivemos uma queda muito
grande de qualidade."
Simas liga essa decadência, acentuada entre as décadas de
1990 e 2000, ao processo de profissionalização das escolas, e consequente
seleção de enredos que privilegiam acordos comerciais em detrimento dos
interesses do público. Trata-se de um paradoxo —os sambas começaram a piorar
conforme as escolas enriqueceram.
Era uma época em que a economia do país ia bem, e as empresas
passaram a patrocinar os enredos. "Só que eram patrocínios difíceis de
carnavalizar", diz Simas. "É difícil desfilar com enredo sobre
companhia aérea ou de gás, marca de xampu ou camisinha. Ou
então com grana de prefeituras de cidades com histórias que como você vai
carnavalizar?"
Se os anos 1970 e 1980 marcaram um auge de popularidade dos
sambas de enredo, impulsionados por uma pujante indústria fonográfica, as duas
décadas seguintes, a grosso modo e com exceções, não foram tão brilhantes.
Estudiosos como Spirito Santo, no livro "Do Samba ao Funk do Jorjão",
também apontam para uma estagnação criativa nas baterias.
"A espontaneidade que o ritmista tinha no passado acabou —e
eu sinto falta. Hoje o desfile é todo perfilado, antes botava lá 200 e tantos
homens e vamos embora", diz Ciça, com 66 anos de idade, sendo mais da
metade deles comandando baterias no Carnaval.
É um processo de resposta aos critérios dos jurados, cada vez
mais técnicos, já que os diretores de bateria trabalham todo o ano para
corrigir o que foi apontado como erro no Carnaval anterior. De certa forma, as
baterias já saem com um dez, mas a cada detalhe apontado como erro, vão
perdendo pontos.
"Um prato, pandeiro ou um ganzá que eles achem que está
sendo tocando na frente, perde ponto. Então, isso não existe mais nas
escolas", diz Ciça. "Hoje você faz uma afinação da marcação de
primeira e tudo tem que estar igual. Os jurados hoje pegam muito nisso. Tem que
tocar tudo direitinho, não pode oscilar."
Ganhar o Carnaval, também
uma consequência da entrada de dinheiro, se tornou mais importante do que ter
um samba na boca do povo. "A gente é tolhido. As escolas se
profissionalizaram demais. Existe muita regra dentro do samba, porque a
competição é de alto nível. As baterias ficaram comportadas demais."
Mas a última década trouxe algumas transformações. Hoje, se um
ritmista não consegue ir a um ensaio por motivos de trabalho, ele pode aprender
o desenho, por exemplo, de um tamborim, através de vídeos enviados pela
internet, para tocar no dia do desfile.
O perfil do ritmista, diz Ciça, também mudou. "A garotada
estuda música, faz aula de percussão, coisa que não existia. São muito bons,
chegam perto de mim e fico assustado. Se deixar, querem voar. Mas a minha
experiência, com a juventude deles, faz a coisa acontecer."
Em março, Simas publica uma nova edição de seu livro sobre os
sambas de enredo, parceria com Alberto Mussa, originalmente lançado em 2009. No
posfácio, eles refletem sobre os últimos anos de desfiles.
"O fim dele era melancólico. A gente praticamente decretava
a possibilidade da morte do gênero", diz o historiador. "Mas o
posfácio constata uma melhoria."
Simas esclarece que não está fazendo uma "apologia da
miséria", mas acredita na relação do dinheiro com a qualidade dos enredos.
"Quando o dinheiro começou a sumir, as escolas de samba tiveram que apelar
para enredos autorais, né? Então você deu mais liberdade ao artista, ao
carnavalesco e isso melhorou."
O ano de 2012 foi marcante nesse sentido. A Porto da Pedra desfilou
um enredo patrocinado, chamado "Iogurte, do Império Otomano às Cortes
Europeias". "Mas, ao mesmo tempo, você tem dois sambas de excepcional
qualidade —da Portela, sobre a Bahia, e da Vila Isabel, sobre as relações entre
Angola e Brasil. Mas vem melhorando com o tempo, não teve uma virada. Vem se
desenhando uma melhoria."
Nesse processo, a ascensão de políticos que faziam ataques ao
Carnaval, como o ex-prefeito Marcelo Crivella,
do Republicanos, no
Rio de Janeiro, e Jair Bolsonaro,
do PL, em âmbito
nacional, geraram reações das escolas. A mais marcante delas é o desfile da
Mangueira, em 2019, com samba político e exaltando Marielle Franco.
Neste ano, além da Viradouro, temas brasileiros e
afro-brasileiros surgem na Mangueira, com "As Áfricas que a Bahia
Canta", e na Beija-Flor, com "O Grito dos Excluídos no Bicentenário
da Independência", entre outros. Há também um olhar autorreferente, como a Portela comemorando seu
centenário este ano.
No ano passado, a Vila Isabel homenageou Marinho da Vila,
e este ano, a atual campeão, Grande Rio —vencedora no
ano passado com um enredo sobre Exú—, celebra Zeca Pagodinho.
Já o Império Serrano dedica o desfile a Arlindo Cruz.
Paralelamente, a velocidade está diminuindo. "As baterias
estão cadenciando mais. Gente que trabalha com formação de opinião em escolas
de samba desceu o sarrafo nesse tipo de coisa", diz Simas. "É claro
que não vão tocar a 113 BPM como tocavam em meados da década de 1970. Mas na
virada dos 1990 para os 2000, eram metralhadoras, estavam virando frevo", diz Simas.
Nos últimos anos, a Mocidade Independente de Padre Miguel chegou
a desfilar com uma bateria a 137 BPM —redução considerável quando comparado aos
quase 160 BPM de algumas baterias, duas décadas atrás. Em 2020 e 2022, a Grande
Rio foi à avenida um samba a 143 BPM.
Ciça fez parte desse processo. "Fiquei calado por muitos
anos em relação a isso, mas agora tenho falado —a responsabilidade pelo
andamento é de todo mundo", diz. "Em escola organizada, mestre de
bateria não decide o andamento. Você senta para conversar com o presidente e
diretores. Se decide o que é melhor para a escola."
Ele fez carreira tocando perto dos 150 BPM na Estácio de Sá, e levou essa abordagem para a
Viradouro, com baterias pegadas e as caixas em evidência. "Só
que tem um detalhe —minha levada de caixa me propunha a fazer isso. Então,
posso tocar em 148 BPM, mas vou tocar suingado, fazer todas as viradas."
Ele admite que "houve um exagero lá atrás", e se
considera um dos responsáveis por isso, mas agora faz uma autocrítica.
"Mudou para melhor, com andamentos mais confortáveis."
O que não mudou —e parece algo insolúvel— é o distanciamento do
chamado "povo do samba" dos sambódromos. Os ingressos, caros,
passaram a atrair mais turistas e uma classe média pouco versada na
musicalidade que vai à avenida, com camarotes disputados e recheados de
atrações paralelas.
"O público que vive aquilo, não tem acesso ao
espetáculo", diz Simas. "Isso prejudica o desempenho. As
arquibancadas em geral são frias, tanto no Anhembi quanto
na Sapucaí."
Hoje, diz Ciça, para sentir o samba de enredo em sua pulsação
máxima, é melhor ir a um ensaio técnico. "No dia do desfile, cai mais ou
menos uns 50% do que você viu no ensaio. Carnaval é caro, né? Estou reclamando
com você, mas tenho que aceitar isso."
Pierrôs e
Colombinas são para sempre https://bit.ly/3Ye45TD
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