18 fevereiro 2023

Maracatu Piaba de Ouro

MARACATU PIABA DE OURO: ESTE ANO TEM CARNAVAL

A poucos dias de sair às ruas após um hiato de dois anos, o maracatu fundado por Mestre Salustiano, em 1977, se prepara para voltar à folia
TEXTO E FOTOS 
CHICO LUDERMIR/Revista Continente

 


Fantasias espalhadas no galpão da Casa da Rabeca indicavam um sonho. A espera por dois anos sofridos, intermináveis, sem Carnaval estava, por fim, prestes a acabar. Lantejoulas voltando a serem bordadas em golas de caboclo de lança, penas outra vez coladas nos chapéus de arreia-mar, reparos em roupas de índias e baianas que não aguentavam mais o cheiro de guardado. Na sede do Maracatu Piaba de Ouro, na Cidade Tabajara, em Olinda, tudo naquele fim de tarde de semana pré-carnavalesca parecia estar como deveria ser: a todo vapor, como de costume há mais de 40 anos. 

Desde 1977, quando foi fundado por Manoel Salustiano – um dos mestres mais importantes da cultura popular de Pernambuco –, aquele maracatu de baque solto nunca tinha deixado de sair às ruas um Carnaval sequer. Ligeiros e difíceis de pegar, como o peixinho de água doce da região que dá nome ao brinquedo, as “piabas” estavam de quarentena desde 2020, quando a pandemia ceifou vidas, suspendeu a alegria e os carnavais. A espera castigou forte a família Salu que, há décadas, tem na arte um motivo para estar viva e, ao mesmo tempo, um meio de sobrevivência. 

Ao redor das fantasias em confecção, quatros gerações somavam esforços para dar conta de deixar tudo preparado para o próximo domingo (19/2), quando mais de 200 folgazões sairão em três ônibus lotados, para ganhar as ruas lotadas de Olinda. Ana, costureira e uma das ex-mulheres de Salu, tecia os bicos das roupas, enquanto Betânia, uma entre as 15 filhas e filhos do mestre, pregava com cola quente um chapéu. Ao lado dela, Jemerson, neto do fundador, cortava uma gola pequenina: era para seu filho caçula, o mais novo entre os bisnetos. Irlan, com pouco mais de um ano, vai brincar em 2023 o seu Carnaval de número um. 

Ver a desenvoltura de Irlan ao provar uma gola de maracatu pela primeira vez é se deparar com uma tradição ancestral, que corre no sangue e veio junto com Salu e seu pai – João Salustiano – da cidade de Aliança, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, nascedouro de muitos brinquedos. “A partir de hoje, eu não corto mais cana”, disse Salu a João pouco antes de rumar à cidade grande. Em Olinda, trabalhou em serviços gerais, casa de família e vendeu picolé. E do pouco que ganhava, investia nos folguedos, num misto de desejo por valorizar a cultura do seu povo e de necessidade de levar consigo as brincadeiras que o constituíam, a sua própria terra. E foi assim, reunindo a família, que, além do Piaba, montou também o cavalo-marinho Boi Matuto, o Mamulengo Alegre, a Ciranda Nordestina e o grupo Família Salustiano e a Rabeca Encantada.

Ver Irlan se preparar para brincar Carnaval pela primeira vez é também entender uma dimensão muito própria da cultura popular: o seu caráter de transmissão oral e familiar. Ou como disse 
Maciel Salu, também filho do mestre, “a brincadeira de terreiro só se perpetua dentro terreiro, quando os mais novos veem os mais velhos e mais velhas brincarem”. 

Não é de forma nenhuma por acaso que sejam os filhos, filhas, netos e netas de Salu os que tocam o Piaba de Ouro com a mesma paixão do pai e avô, falecido em 2008. O convívio cotidiano nunca colocou fronteiras entre família e brincadeiras. E a casa sempre foi também o lugar dos ensaios, da confecção e até do alojamento para os foliões durante o período carnavalesco. Chamada pelo apelido de Moca, Imaculada Salustiano, outra filha do mestre, lembra-se bem de dividir o quarto com golas e tecidos de fantasias na infância. “A gente muitas vezes dormia no sofá, porque as camas estavam todas tomadas por alegorias e adereços”, conta. “A nossa sede era nossa própria casa. Salu dava a vida pelo maracatu e a gente viu isso desde criança.” 

Assim como Irlan, Moca também começou a brincar desde o ventre da mãe. O Piaba de Ouro a viu nascer e dar os primeiros passos ao som frenético do terno de maracatu. Mas, diferentemente dos irmãos homens e mais velhos, ela teve que disputar seu lugar. “Maracatu é coisa de cabra macho”, dizia Salu. Até que ela, com pouco mais de 10 anos e seu jeito cativante – que carrega até hoje – convenceu o pai de deixar ela e a irmã Betânia desfilarem de baianas. “A gente tinha substituído dois rapazes que tinham faltado à sambada. Depois desse dia, cheguei e disse enquanto fazia um cafuné nele: ‘A partir de agora a gente vai ficar fixa como baiana, né, pai?’”, relembra. Salu relutou, mas, ao ver a filha amuada, cedeu. E com seu jeito, ao mesmo tempo rígido e amoroso, sustentou a presença das meninas diante de olhares reprovadores: “As filhas são minhas, o brinquedo é meu. Então elas vão brincar”. 

A participação pioneira de Moca e Betânia no Piaba, e ainda no cavalo-marinho da família, marcou a abertura de um espaço de destaque para mulheres que hoje, além de estarem no costumeiro lugar dos bastidores, ocupam posições de decisão. Moca não só desfila como cabocla de lança – o que, por muito tempo, foi impensável dentro do universo tradicional da cultura popular –, como é a primeira e atual presidenta do Piaba de Ouro, posto já ocupado por seus irmãos Maciel, Manoelzinho, Pedro e Dinda. 

Faltava uma semana exata para o primeiro desfile do grupo após um par de anos sem botar o brinquedo na rua. O sol quente do começo da tarde daquele domingo deixava o chão batido da Casa da Rabeca mais amarelo e a escultura do Mestre Salustiano gigante empunhando uma rabeca, com uma luz bem viva. O cenário de contraste de cores do ensaio geral que começaria dali a pouco marcava o reencontro dos folgazões com aquele terreiro e o início de um período de resguardo e preparo para os dias de Momo. Desse preparativo, cada brincante já levaria consigo sua fantasia. Para os de dentro, era chegada a hora da culminância de um ano inteiro de dedicação. 

De longe, víamos Moca se aproximar. Acabara de descer a rua de sua casa e caminhava em direção ao galpão principal para se juntar às irmãs Mariana e Betânia, também moradoras do mesmo sítio. Elas já aguardavam Moca para o ensaio. Quando vivo, Salu comprou um terreno e deu um pedacinho de chão para cada um dos filhos construir sua casa perto da dele e, sustentando o seu legado, até hoje, boa parte deles se mantém morando ao redor da Casa da Rabeca. “A gente sempre diz que Salu era como uma galinha que sempre anda arrodeada dos pintinhos”, brinca Betânia. “Desde sempre foi assim. Para onde ele ia, ele sempre levava a gente.” 

Tudo ali no Piaba de Ouro ainda ressoa a existência de Mestre Salustiano. Seja nos genes e nas memórias dos que ficaram, ou na dedicação e entrega dos que, como ele, assumiram a responsabilidade de manter viva uma tradição popular, um patrimônio. “Esses últimos dois anos foram muito difíceis pra gente. E esse Carnaval que se aproxima vem cheio de esperança, mas também de incertezas”, confessa Mariana. “A expectativa é muito grande, e a ansiedade maior ainda.” 

Aos poucos, o terreiro foi se enchendo. Ao som das rimas dos mestres Gleibson e Cleiton, os folgazões executavam suas manobras entres saltos e quedas no chão. Quando o terno começou a tocar, qualquer dúvida parecia se suspender. E a certeza se fazia presente no corpo de cada brincante. Este ano o Piaba sai. Este ano vai ter Carnaval.


Para acompanhar o Piaba:

Domigo (19/2)
16h Casa da Rabeca – Cidade Tabajara, Olinda
20h Polo Varadouro – Sítio histórico de Olinda

Segunda (20/2)
9h Largo do Guadalupe – Sítio histórico de Olinda
11h Encontro de Maracatus Praça Ilumiara – Cidade Tabajara, Olinda
22h Sambada em Chã de Esconso – Aliança, Zona da Mata Norte

Terça (21/2)
9h Praça do Carmo – Sítio histórico de Olinda
18h Marco Zero – Bairro do Recife


CHICO LUDERMIR, jornalista e mestre em Sociologia. É escritor, artista visual e educador popular.

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