Rogério Cezar de Cerqueira Leite (1931-2024) – uma vida entrelaçada entre ciência, desenvolvimento e democracia
Olival Freire/Portal Grabois /www.grabois.org.br
O mês de dezembro foi aberto com a notícia do falecimento de Rogério Cezar de Cerqueira Leite, eminente cientista brasileiro e construtor de instituições de pesquisa científica e tecnológica. O seu desaparecimento foi lamentado pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Em sua vida e realizações encontramos um entrelaçamento de três facetas que têm marcado a história recente do país: ciência, desenvolvimento e democracia. Ele se formou em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em 1958, e seguiu para um doutorado em física dos sólidos na Universidade de Paris, concluído em 1962. Nesse período ele foi professor assistente do ITA, até 1965. Em seguida, passou a trabalhar no renomado laboratório da Bell. Nesse laboratório, mas nos EUA, estava o cientista brasileiro Sergio Porto que havia ali se radicado e aglutinado um grupo de latino-americanos, grupo esse que depois se deslocou para University of Southern California. Cerqueira Leite e Sergio Porto foram pioneiros nos trabalhos com o laser, o qual havia sido inventado em 1960, simultaneamente por norte-americanos e soviéticos. Essa especialidade no laser foi decisiva para o governo brasileiro, já na época da ditadura militar, empreender esforços para traze-los de volta para o Brasil, para se estabelecerem na recém-criada Universidade de Campinas (Unicamp). Nesse relato da trajetória inicial de Cerqueira Leite já encontramos a excelência da ciência brasileira, internacionalizada e de qualidade desde o início de sua institucionalização. Essa qualidade já estava presente onde Cerqueira Leite se graduou, o ITA. Essa instituição foi criada em fins da década de 1940, por iniciativa do Brig adeiro Montenegro. Este, pela sua experiência durante a Segunda Guerra, havia compreendido que a aviação a jato teria grande papel na aeronáutica civil, além da militar, o que já havia sido verificado na guerra, de onde a necessidade de formação de engenheiros altamente qualificados nesse domínio. Não por acaso, vinte anos depois da criação do ITA, os engenheiros ali formados seriam a base da constituição da EMBRAER. Assim, Cerqueira Leite foi fruto dessa formação de qualidade em ciência e da ambição nacional pelo desenvolvimento econômico.
A busca do desenvolvimento nacional com o aporte da ciência de qualidade marcaria a vida ulterior de Cerqueira Leite, até seus últimos dias na administração do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM). O retorno de Cerqueira Leite foi possível pela ambição desenvolvimentista presente na ditadura militar, a partir do governo Costa e Silva. De fato, ele, Sergio Porto, e outros, foram repatriados por iniciativa do ministro Reis Velloso, que se dirigiu aos EUA para convidar Porto e seu grupo para vir para a recém-criada Unicamp, com promessas de espaços na nova universidade, contratações, construções e financiamento da nova área da ciência à qual Cerqueira Leite estava dedicado, o laser e a física do estado sólido. Cerqueira Leite foi o primeiro a retornar ao Brasil e assumiu responsabilidades na gestão da nova universidade, coordena ndo seus institutos básicos, e tendo papel importante na conexão da pesquisa na universidade com o desenvolvimento tecnológico. Assim é que encontramos a sua contribuição decisiva no CODETEC, primeira incubadora tecnológica do Brasil, na Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (CIATEC), e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), hoje o Sirius, no Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM).
Cerqueira Leite tinha convicções democráticas. Foi amigo do físico e comunista Mario Schenberg, o qual tentou, sem sucesso, trazer Cerqueira Leite para a Universidade de São Paulo (USP). Cerqueira Leite acompanhou, consternado, a cassação dos direitos políticos, e a aposentadoria compulsória, de cientistas brasileiros pela ditadura militar, inclusive do seu amigo Schenberg. Em fins da década de 1970, com a ditadura já dando sinais de enfraquecimento e a resistência democrática crescendo, Cerqueira Leite pôde assumir suas convicções mais abertamente, tornando-se colunista e membro de corpo editorial do jornal Folha de São Paulo, a partir de 1978. Na mesma época aproximou-se, em Campinas, de lideranças do MDB, a exemplo de José Roberto Magalhães Teixeira, o Grama, prefeito e deputado federal, mais tarde filiado ao PSDB. Desde então, Cerqueira Leite foi uma voz incansável em todos os debates relevantes sobre a política de ciência, tecnologia e inovação, e a conexão dessa política com o projeto de desenvolvimento econômico do Brasil.
O legado de Cerqueira Leite extrapola, portanto, a qualidade da ciência que produziu e das instituições que administrou ou ajudou a criar. É um exemplo a inspirar novas gerações sobre a necessária ligação no caso brasileiro entre ciência, desenvolvimento e democracia.
Olival Freire Jr. é Professor de Física e História das Ciências na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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