O mercado financeiro: o guardião da instabilidade conveniente
Mesmo quando a economia está crescendo, a inflação está sob controle e o desemprego está em queda, o mercado exige mais
Diogo Almeida Camargos/Le Monde Diplomatique
O mercado financeiro, apesar de sua reputação como guardião do progresso econômico, sempre encontra razões para desaprovar qualquer governo que não abrace a agenda neoliberal. Recentemente, mesmo diante de bons indicadores econômicos, como a redução da inflação, crescimento do PIB e fortalecimento do mercado de trabalho, o mercado financeiro – essa entidade tão sensível e exigente – continua a torcer o nariz. É como se os bons números não fossem suficientes para agradar e acomodar o seu ego insaciável.
Essa postura levanta uma questão importante: o mercado financeiro está realmente preocupado e interessado no crescimento e na estabilidade econômica? Se sim, na estabilidade e no crescimento de quem ou do quê? Erik Olin Wright, em sua obra Como ser Anticapitalista no Século XXI[1], mostra que “o capitalismo, ao se basear na lógica do mercado e na acumulação de lucro, torna-se intrinsicamente resistente a qualquer tentativa de redistribuir riqueza ou empoderar as classes trabalhadoras”. A lógica do mercado financeiro não é, portanto, apenas econômica, mas também política e ideológica: ele opera como um instrumento de dominação de classe, onde o lucro dos ren tistas e especuladores prevalece sobre o bem-estar social. No livro Dinheiro: o poder da abstração real[2], Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo apontam que “as decisões cruciais no capitalismo são tomadas pelos donos da riqueza e de sua forma suprema, o dinheiro”.
“Tadinho” do mercado financeiro: sempre injustiçado
Existe o fetiche de se apresentar como vítima de políticas públicas “inadequadas”, que geram “gastos para o Governo”, sempre que um governo ousa priorizar o combate às desigualdades, investir em programas sociais ou apenas fazer com que os detentores do capital contribuam um pouco mais. Contudo, mesmo alcançando um crescimento econômico acima do esperado, o mercado se queixa da “falta de reformas estruturais” e da “falta de controle do gasto público”, um eufemismo para medidas que reduzam direitos sociais.
David Harvey explica em seu livro Crônicas Anticapitalistas[3], que na lógica do poder capitalista, a acumulação de riqueza se torna um poder de controle dos outros, principalmente sobre a classe operária e trabalhadora. De tal forma que os capitalistas, detentores do poder econômico, têm a capacidade de tornar o Estado em um operador de suas próprias causas. Além disso, Harvey reflete sobre quem tem a legitimidade de deter o poder no “interior” do Estado, de modo que haverá sempre uma disputa eterna sobre como o poder econômico é exercido no aparelho estatal.
Curiosamente, o mercado financeiro parece ter uma memoria seletiva quando se trata de quem realmente paga a conta. Entre as propostas de tributação de dividendos, grandes fortunas e o fim de isenções fiscais para os setores privilegiados, o discurso mórbido do “risco a economia” emerge com força. Para o mercado, tais medidas seriam uma afronta a liberdade econômica e ao progresso – uma retorica que, no fundo, busca proteger interesses exclusivos da elite rentista. Então, por que não discutir seriamente a implementação dessas medidas em prol de uma sociedade mais justa?
O Estado: ferramenta que o mercado ama odiar
Jessé de Souza, em A Elite do Atraso[4], chama nossa atenção para como o mercado financeiro brasileiro se beneficia de um sistema que é, essencialmente, “um pacto oligárquico”. Essa elite rentista utiliza o mercado como mecanismo de drenagem de recursos das classes populares para os estratos mais altos da sociedade. Programas sociais ou políticas de valorização do salário mínimo são, invariavelmente, vistas como populismo fiscal, ainda que seus impactos econômicos positivos sejam comprovados.
A hipocrisia do mercado financeiro parece ter uma “memória seletiva” quando se trata de quem realmente paga a conta. Benefícios fiscais concedidas a grandes empresas e setores econômicos privilegiados são tolerados como “necessários” para o funcionamento da economia. Entretanto, quando surge a oportunidade de reverter essas isenções ou aumentar a tributação de grandes fortunas, o mercado financeiro clama por “responsabilidade fiscal”, enquanto silencia diante dessas mesmas benesses.
Quem paga a conta? Sempre os mesmos
A contradição entre os bons indicadores econômicos e a desaprovação do mercado financeiro demonstra que ele não está interessado em progresso coletivo. Como Jesse de Souza afirma: “A neutralidade do mercado é, na melhor das hipóteses, uma ficção, usada para justificar tal resistência a qualquer mudança estrutural que ameace seus lucros. Mesmo quando os números demonstram que a economia está crescendo, a inflação está sob controle e o desemprego está em queda, o mercado exige mais – mais reformas, mais cortes de gastos, mais flexibilização. Essa postura revela sua verdadeira essência: um sistema que, longe de promover o bem-estar social, trabalha incessantemente para preservar e ampliar as desigualdades.”
Conclusão: o mercado e sua contradição infinita
O mercado adota a postura de um juiz onipotente, cujas sentenças parecem divorciadas da realidade dos números. Ainda que o Brasil ostente hoje indicadores econômicos positivos, como a redução da inflação, o fortalecimento do emprego e o aumento do PIB além do esperado, o mercado continua a reprovar políticas que não atendam aos seus interesses e necessidades. Essa aparente inconsistência revela algo fundamental: o mercado financeiro não se opõe a resultados econômicos favoráveis, mas sim a resultados que não assegurem a reprodução de seus privilégios e da elite.
David Harvey argumenta, com clareza, que o poder econômico é a chave para entender como o capitalismo transforma o Estado em um executor de seu interesse. Nesse contexto, a insatisfação do mercado financeiro não é fruto da preocupação genuína com a estabilidade econômica; é uma reação política contra qualquer tentativa de redistribuir riqueza ou desafiar sua hegemonia.
Esse mercado não é neutro nem vítima. Ele é o arquiteto de um sistema que valoriza o lucro acima do bem-estar, que reage negativamente as politicas de inclusão social e que instrumentaliza o Estado para moldá-lo aos seus interesses. A maior ironia é que, embora o mercado tenha aversão ao Estado e ao intervencionismo, ele recorre a essa mesma estrutura estatal para garantir seus privilégios em momentos de crises.
Em última análise, os governos não são desaprovados pelos seus resultados econômicos, mas sim por não serem de sua matriz ideológica. É preciso enxerga-lo não como aliado de um progresso, mas como um agente de interesse. E, ao reconhecermos isso, temos a chance de construir uma econômica que não seja refém de seu capricho.
Diogo Almeida Camargos é formado em Gestão Financeira pelo Centro Universitário Una, Certificado em CPC-P, Especialista em Direito Penal Empresarial e em Direito Penal Econômico pelo Centro Universitário União das Américas, Master in Business em Governança, Risco e Controles e especialista em Direito Empresarial pela Faculdade Cedin.
[1] WRIGHT, Erik Olin. Como ser anticapitalista no século XXI?. Tradução de Fernando Cauduro Pureza. 1 ed. São Paulo. Boitempo, 2019.
[2] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. GALÍPOLO, Gabriel. Dinheiro: o poder da abstração real. 1 ed. São Paulo. Editora ContraCorrente, 2021, p. 21.
[3] HARVEY, David. Crônicas anticapitalistas. Tradução de Artur Renzo. 1 ed. São Paulo. Boitempo, 2024.
[4] SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro. Estação Brasil, 2018.
Leia: desconfiança do mercado é honra para Lula https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/minha-opiniao_5.html
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