Os poderes do dinheiro
Os
mercados financeiros perderam a capacidade de avaliar os preços dos ativos. O
medo esmagou a ganância
Luiz Gonzaga
Belluzzo, CartaCapital
As torres de marfim dos economistas,
práticos e acadêmicos, estão alvoroçadas com as descobertas da Moderna
Teoria Monetária. Em meio à ruptura dos mercados provocada pela pandemia,
ganhou mais força de novidade o poder de criação monetária abrigado nos
bancos e nos Bancos Centrais. Amigos que se dedicam ao estudo do dinheiro e de
sua história de estripulias sentem incômodos diante da reapresentação do
Velho Monarca dos mercados com a roupagem de um influencer novidadeiro.
Vamos passar a bola para um historiador. Em
sua obra Civilização Material e Capitalismo, Fernand Braudel afirma que “é
na cúspide da sociedade que o capitalismo afirma a sua força e revela a sua
natureza. É na altura dos Bardi, dos Jacques Coer, dos Fugger, dos John Law e
dos Necker que devemos fazer as perguntas, que temos a chance de descobrir o
capitalismo”.
Braudel não está falando do mercado, do
jogo das trocas que, desde a antiguidade, se insinua nos interstícios da vida
social. Ele está se referindo ao capitalismo dos bancos, ou seja, à ordem
econômica em que o dinheiro não é apenas um intermediário nas transações,
mas a forma geral da riqueza e o objetivo final da concorrência entre os
produtores. O capitalismo supõe o mercado, mas o mercado apenas anuncia a
possibilidade do capitalismo que só se efetiva quando a produção se organiza
sob uma forma adequada ao propósito do ganho monetário e não apenas para a
troca eventual de mercadorias, destinada simplesmente a diversificar o consumo
dos produtores independentes.
A produção organizada diretamente para a
troca, ou seja, o intercâmbio generalizado de mercadorias, só pode existir
sob o capitalismo. A sociabilidade dos produtores privados que produzem
diretamente para a troca começa a ser definida a partir da numeração das
mercadorias – inclusive dos proprietários da força de trabalho – por uma
medida comum de valor.
Numa segunda etapa, os indivíduos
“separados” devem se sub- meter ao teste do reconhecimento social da
“declaração” de valor de seu produto mediante o veredicto anônimo do
mercado. Isto é, a mercadoria particular deve transfigurar-se realmente em sua
forma geral, o dinheiro.
Se, no “salto-mortal” para o dinheiro a
mercadoria sucumbe, o produtor também soçobra. O dinheiro é, portanto,
fundamento das relações entre os produtores privados e, por outro lado, o
único critério quantitativo admissível para a avaliação do enriquecimento
privado.
Esse sistema complexo, em sua evolução,
criou uma forma interessante de criar dinheiro para dar início ao jogo do
mercado. O dinheiro criado pelos bancos foi adquirindo um caráter universal,
ou seja, deve ser aceito em todas as negociações, transações e, sobretudo,
na marcação do valor da riqueza registrada nos balanços. Não só as
mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas a situação patrimonial,
devedora ou credora das empresas e dos bancos deve es- tar registrada nos
balanços. Nesse caso, o dinheiro aparece em sua função de re- serva de
valor, forma geral da riqueza.
O Estado é o senhor da moeda, mas os bancos,
sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos da criação
monetária. Os “fluxos de crédito” promo- vem contínuas mudanças na
composição nos estoques de riqueza. São íntimas as relações entre o
avanço do sistema de crédito e a acumulação de títulos que representam
direitos sobre a renda e a riqueza.
Gerado ao logo de vários ciclos de dinheiro
de crédito, esse estoque de certificados de propriedade (ações) e títulos
de dívida é avaliado diariamente nos mercados organizados. Essa avaliação
depende fundamentalmente das expectativas dos agentes do mercado. Essas
expectativas flutuam conforme as ondas de otimismo e pessimismo ou, se
quiserem, conforme a alternância entre a ganância e o medo.
Na crise do coronavírus, os mercados
financeiros perderam a capacidade de avaliar os preços dos ativos. O medo
esmagou a ganância. Os senhores da riqueza financeira precipitaram seus
portfólios na busca desesperada pelo dinheiro. Se todos querem vender,
ninguém quer comprar. Só o provimento de grana pelo Banco Central salva os
desesperados. Os bancos centrais salvaram e estão a salvar. Os mercados
socorridos aprofundam as divergências abissais entre a valorização das
ações nas bolsas de valores e a derrocada do circuito de formação da renda
e do emprego.
Os atônitos comentaristas econômicos da
mídia não sabem se aplaudem as bolsas de valores eufóricas ou se pranteiam
os milhões de desempregados que vagueiam pelo planeta. É a mesma turma que
repete sem cessar na cola dos Paulo Guedes da vida: “Não há dinheiro”.
Crise sem fim envolve o governo https://bit.ly/2ArYe6Y
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