A companhia dos amigos
Rubem Braga
O jogo estava marcado para as
10 horas, mas começou quase 11. O time de Ipanema e Leblon tinha alguns
elementos de valor, como Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Lauro Escorel,
Carlos Echenique, o desenhista Carlos Thiré, e um cunhado do Aníbal que era um
extrema-direita tão perigoso que fui obrigado a lhe dar uma traulitada na
canela para diminuir-lhe o entusiasmo. Eu era beque do Copacabana e atrás de
mim o guardião e pintor Di Cavalcanti. Na linha média e na atacante jogavam um
tanto confusamente Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa,
Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa e o crítico Paulo
Mendes Campos. Não havia juiz, o que facilitou, muito a movimentação da peleja,
que se desenrolou em três tempos, ficando convencionado que houve dois jogos.
Copacabana venceu o primeiro por 1×0 (houve um gol anulado porque Di Cavalcanti
declarou que passara por cima da trave; e, como não havia trave, ninguém pôde
desmentir). O segundo jogo também vencemos, por 2 a 1. Esse 1 deles foi feito
passando sobre o meu cadáver. Senti um golpe no joelho, outro nos rins e outro
na barriga; elevei-me no ar e me abati na areia, tendo comido um pouco da
mesma.
A torcida era composta de variegadas senhoras que ficavam sob as
barracas e chupavam melancia. Uma saída do center-forward Schmidt (passando a
bola gentilmente para trás, para o center-half) e uma defesa de Echenique foram
os instantes de maior sensação.
Carlos Drummond de Andrade deixou de comparecer, assim como
outros jogadores do Copacabana, como Sérgio Buarque de Holanda e Chico Assis
Barbosa. Afonso Arinos de Melo Franco jogará também no próximo encontro, em que
o Leblon terá o reforço de Fernando Tude e Édison Carneiro, além de Otávio Dias
Leite e outros. Joel Silveira mora em Botafogo, mas como sua casa é perto do
Túnel Velho jogará no Copacabana.
Assim nos divertimos nós, os cavalões, na areia. As mulheres
riam de nosso “prego”. Suados, exautos de correr sob o sol terrível na areia
quente e funda, éramos ridículos e lamentáveis, éramos todos profundamente
derrotados. Ah, bom tempo em que eu jogava um jogo inteiro – um meia-direita
medíocre mas furiosa – e ainda ia para casa chutando toda pedra que encontrava
no caminho.
Depois mergulhamos na água boa e ficamos ali, uns 30 homens e
mulheres, rapazes e moças, a bestar e conversar na praia. Doce é a companhia
dos amigos; doce é a visão das mulheres em seus maiôs, doce é a sombra das
barracas; e ali ficamos debaixo do sol, junto do mar, perante as montanhas
azuis. Ah, roda de amigos e mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde
momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta, mas doloroso. Aquele amará
aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente,
uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro
ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e
aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, o corpo molhado,
será aflita e feia, azeda e triste.
E houve o Natal. Os Bragas jamais cultivaram com muito ardor o
Natal; lembro-me que o velho sempre gostava de reunir a gente num jantar, mas a
verdade é que sempre faltava um ou outro no dia. Nossas grandes festas eram São
João e São Pedro – em São João havia fogueira no quintal, perto do grande pé de
fruta-pão, e em São Pedro, padroeiro da cidade, havia uma tremenda batalha
Naval aérea inesquecível de fogos de artifício. Hoje não há mais nem São João,
nem São Pedro, e continua não havendo Natal. Tomei um suco de laranja e fui
dormir. A cidade estava insuportável, com milhões de pessoas na rua, os
caixeiros exaustos, os preços arbitrários, o comércio, com o perdão da palavra,
lavando a égua, se enchendo de dinheiro. Terá nascido Cristo para todo ano dar
essa enxurrada de dinheiro aos senhores comerciantes, que já em novembro
começam a espreitar o pequenino berço na estrebaria com um olhar cúpido?
Atravessarei o ano na casa fraterna de Vinícius de Moraes. Estaremos com
certeza bêbedos e melancólicos – mas, em todo caso, meus amigos, se eu não
ficar melancólico farei ao menos tudo para ficar bêbedo. Como passam anos!
Ultimamente têm passado muitos anos. Mas não falemos nisso.
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Veja: Federação para eleger Lula
e derrotar Bolsonaro https://bit.ly/3uGYIiS
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