Paulo Moreira Leite, em seu blog
Num esforço para se entender
com clareza a mudança institucional em curso com o afastamento temporário de
Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer, até a palavra final do Senado, cabe
reconhecer que o país atravessa um golpe de Estado em 2 turnos.
Após os 55 a 22 da primeira
votação, cabe perguntar se será possível reverter o quadro na segunda rodada. A
maioria dos parlamentares, assessores e ministros ligados ao governo Dilma
costuma dizer que sim. Mesmo admitindo uma imensa dificuldade até lá, enxergam a
possibilidade de uma virada em função de dois fatores.
O primeiro, é que desta vez
serão necessários obter cinco votos a mais. Mesmo considerando que se
trata de um esforço imenso, numa disputa voto a voto, com cartas marcadas,
pressão de todo tipo, e
uma desvantagem importante – a máquina do governo irá
trabalhar pelo outro lado – seria absurdo considerar, na política e na
matemática, que se trata de um objetivo derrotado com antecedência. Como me
disse um deputado: "Se a questão é oferecer cargos, a situação se
inverteu. Desta vez temos um ministério inteiro para negociar. Nós é que temos
as mãos livres."
O segundo ponto envolve a
desagregação precoce do governo Temer. Um elemento é básico.
De volta a cena na Câmara de
Deputados, Eduardo Cunha é a confirmação do grande logro. Mostra quem manda.
Nomeia, demite, escolhe. Mandará cada vez mais. Não há opção para a
"governabilidade" de Temer. Nem há remédio disponível para uma
decepção desse tamanho. É engolir ou vomitar.
Seria bondade excessiva falar
em "trapalhadas" ou "desencontros." As paneladas não fazem
barulho por acaso. O que se viu nesta primeira semana mostra um ponto mais
profundo: uma incompatibilidade absurda entre o novo governo e a maioria do
povo brasileiro, o que explica tantas idas e voltas, acertos, arranjos
improvisados e piruetas que nada resolvem. Há causas profundas para este
desacerto geral.
O primeiro é que se trata de um
governo empossado sem um único voto popular, numa sociedade onde os valores
democráticos são um elemento real da vida política, como se demonstrou pela
resistência ao impeachment quando ficou claro que não prova de crime de
responsabilidade contra
Dilma. Numa sociedade que preza a democracia,
isso é um problema grande, vamos combinar. Pode até ser parcialmente contornado,
desde que haja humildade e bom senso dos governantes para entender a situação e
admitir sua pequena margem de manobra.
O ponto aqui é demonstrar
respeito, reverência, pelos detentores daquela frágil linha demarcatória que
está sendo atravessada, a soberania popular. É pelo menos fingir que não se
queria fazer isso, dar a impressão que não foi de propósito mas um puro
acidente. Difícil, né?
Nascido numa imensa situação de
fraqueza, num parto difícil, daquele tipo que médicos e parentes devem se
perguntar a todo momento se o bebê sobreviverá – neste caso, haverá
efetivamente um segundo turno político – o governo Temer quer implantar
um projeto sem apoio na realidade política do país.
Tutelado pelas forças que
permitiram a coleta de votos na Câmara e no Senado, um conjunto derrotados em
todas eleições presidenciais desde 2002, não é capaz de dialogar com as
necessidades urgentes da população nem com a realidade vivida pela maioria dos
brasileiros e brasileiras. Num sintoma típico dos conchavos em ar condicionado,
sequer se deu ao trabalho de assumir o compromisso solene de abrir consultas
amplas para sobre o que poderia fazer, na situação atual,
para melhor a
vida da maioria das pessoas -- o que é obrigação número 1 de qualquer candidato
a político, um simples problema de boa educação e bons modos nas
democracias.
Herdeiro de Dilma 2, cujo
pecado político essencial foi abandonar o programa vitorioso nas urnas de
2014, a proposta agora é radicalizar o que já deu errado. Não se
questiona as pensões por morte nem o seguro desemprego que foram anunciadas em
janeiro de 2015, colocando o governo Dilma na descida de uma ladeira de onde só
deu sinal de recuperação depois que passou a denunciar um ataque a democracia.
Temer foi direto na jugular: cortar o bolsa família, mexer na previdência,
extirpar a CLT. O desemprego pode chegar a 14%, diz o ministro da Fazenda
Henrique Meirelles, como se fosse uma fatalidade do destino. Não basta
questionar o Mais Médicos. É preciso promover os planos privados de Saúde, que há
décadas disputam um banquete de verbas públicas.
Na educação, marcada em anos
recentes pela criação oportunidades para pobres e negros, é preciso colocar um
inimigo das cotas para dirigir o ministério. Após uma década e meia de
recuperação das energias da cultura, processo que permitiu uma reconstrução
visível em várias áreas abandonadas ao Deus-mercado, o projeto é andar para
trás, o que explica o desmonte do Ministério e a reação cívica da comunidade de
artistas, inconformada com um retrocesso tão grande. Contra avanços na luta
pela emancipação feminina e a igualdade de gêneros, que mudaram as referencias
sociais e
políticas do país, reforçando traços de civilização necessários a
toda sociedade capaz de olhar para o futuro sem medo, a resposta é o
fundamentalismo religioso, instrumentalizado para projetos políticos
reacionários.
Num país exausto do pensamento
único assegurado pelo monopólio dos meios de comunicação, a promove-se um
ataque a EBC, aldeia pequena mas orgulhosa de seu histórico pela democratização
da mídia, através do qual abriu uma pequena brecha para tentar assegurar o
direito constitucional de cada cidadão de se informar com liberdade de
escolha.
Numa demonstração de respeito
pelos sonhos das grandes maiorias, nas melhores democracias a política
sempre assume a forma de um baile a fantasia. É uma forma de pudor. Neste
Brasil de 2016, é errado dizer que governo está sendo desmascarado. Exibe
a arrogância de quem nunca achou necessário usar máscaras.
Governos em situação de
desastre costumam iludir adversários, capazes de imaginar que irão desfazer-se
por encanto, em função de desacertos sucessivos.
Mesmo um talento conhecido como
Antonio Gramsci, capaz de deixar lições memoráveis sobre a luta política dos
povos contra a opressão, foi capaz de imaginar que Benito Mussolini era pouco
mais do que um líder folclórico, tão irracional que seria capaz de cair
sozinho. Durou vinte anos.
A maioria dos comunistas
alemães acreditou que a social-democracia era um inimigo pior do que o nazismo
de Adolf Hitler. Nada fez para construir uma frente única contra o inimigo
principal. As vésperas do 31 de março de 1964, uma parte dos aliados de Goulart
achava que estaria protegido por comandantes militares leais ao presidente.
Outra parte imaginava que a legalidade democrática era coisa do passado e que
era necessário preparar a luta armada. O resultado dessas duas ilusões é
bastante conhecido.
O inconformismo diante do
governo Temer é o dado mais visível do momento político. Ao contrário do que se
poderia imaginar, a disputa pelo poder ainda não saiu das ruas. É ali que as
decisões tomadas em palácio são questionadas, varias vezes por dia,
em protestos que se somam e até se amontoam. Vive-se a clássica situação em que
os debaixo não suportam mais viver como antes – e os de cima não conseguem
impor a vida de antes.
A pergunta é o que se faz num
momento como este, até previsível, pelo sistema – lembrado no primeiro
parágrafo – de golpe em dois turnos. As manifestações de rua vão prosseguir mas
é enganoso acreditar que poderão continuar indefinidamente. Ou crescem,
conseguem vitórias e abrem uma perspectiva mais ampla, assumindo o caráter de
uma campanha política, com uma direção reconhecida e um alvo legítimo a ser
alcançado. Ou se esvaziam, perdem força e orientação. Podem até ser reprimidas,
numa escala sem a menor relação com operações policiais corriqueiras. Não é
isso que se pode esperar de um governo que reconstruiu um Gabinete de Segurança
Institucional para coordenar, através de um general da área de informação, as
forças do aparato repressivo, inclusive civis.
No plano institucional,
há um momento político decisivo, embora sem data marcada -- o julgamento de
Dilma -- que irá concentrar atenções e energias. A experiência ensina que
o esforço de reverter a votação pode ser bem sucedido caso as forças
comprometidas com a defesa da democracia sejam capazes de estabelecer sua
unidade e agir de forma coordenada, demonstrando ao país quem fala pelo
respeito a Constituição e suas garantias. Esta é a força que pode mudar o jogo
no Senado e recuperar a democracia. Os oposicionistas de hoje que se atrevem a
fazer planos estimulantes para 2018 ainda não entenderam que o calendário
implica em passar por 2016. Em poucos dias de governo provisório, com mandato
de validade de apenas 180, no máximo, se elevaram as pressões contra Luiz
Inácio Lula da Silva, agravando os receios sobre seu destino e sua
liberdade, investigado por Sérgio Moro e acusado por Rodrigo Janot. José
Dirceu recebeu uma pena de 23 anos, a maior da Lava Jato.
Num país onde a liberdade de
expressão é uma garantia pétrea da Constituição, Dilma, que segue presidente da
República, mesmo afastada, foi questionada -- quem sabe será criminalizada --
por dizer que foi vítima de um "golpe". Este é o horizonte, meus
amigos. Imagine João Goulart ser
questionado, em 1964, por dizer que o golpe de
1 de abril poderia promover um "banho de sangue." Pense nos
professores universitários sendo levados para interrogatório, forçados a ficar
em posição de sentido e cantar o hino nacional para demonstrar que não eram
"vermelhos."
Nós sabemos, desde a campanha
pelas diretas-já, de 1984, que a democracia é o valor que unifica os
brasileiros, hoje confrontados com uma realidade bem assinalada por mestre
Jânio de Freitas: "a busca e a perseguição como política e prática geral,
vista agora, só teve um precedente no Brasil: o poder instalado pelo golpe de
1964. Não comparadas as dimensões, a sanha é a mesma. Até a covardia que leva a
demitir o garçom do gabinete presidencial, José Catalão, porque considerado
petista, iguala essa gente de hoje à lá de trás. "
A luta é deste tamanho.
Este é o debate.
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