PARCELANDO A FOME
Para
comprar comida, moradores de ocupação parcelam dívida ou pedem dinheiro a
agiotas; sete em cada dez brasileiros que se endividaram no cartão de crédito o
fizeram para comer
Vitória
Pilar, revista piauí
Crianças, gatos e
cachorros correndo livremente entre as casas fazem parte da rotina do
Residencial Terra Prometida, ocupação numa das regiões mais pobres de Teresina.
Maria Benta Borba Freire, 39 anos, começa os dias abrindo as janelas para
arejar sua casa e diminuir um pouco o calor na moradia de dois cômodos e
banheiro, divididos entre ela, o marido e dois filhos. A rotina dos adultos
começa antes das cinco da manhã: o marido, Chardesom Freire, 38 anos, vai
trabalhar como técnico administrativo, e ela segue a caminho do prédio em que
presta serviços de limpeza. Os filhos passam a manhã em casa, assistindo à aula
de forma remota, e esperam a mãe voltar do trabalho, após às 13 horas.
Depois que Freire chega
em casa, olhar para a geladeira e os armários para preparar o almoço tem sido
mais difícil. Desde o início da pandemia de Covid, ela tem recebido a
conta-gotas o salário de auxiliar de limpeza – isso quando não atrasa quase
seis meses. Em 2021, com uma sequência de salários atrasados de Benta, a
família sobreviveu com menos de 800 reais por mês, graças aos bicos feitos pelo
marido. Com as contas de luz, água, gás e transporte, o dinheiro para fazer as
compras tem se tornado escasso. Quando não conseguem cestas básicas, o jeito é
recorrer ao cartão de crédito – ou pior, pedir dinheiro emprestado a agiotas
com juros a 10%. Com crédito, ou empréstimo, o casal corre até o supermercado
mais próximo. “Conseguir o dinheiro é um alívio misturado à aflição. Ou compra
comida com o dinheiro ou paga o cartão para liberar o crédito”, explica Freire
à piauí. “A gente vive numa bola
de neve.”
A situação do casal
Freire não é diferente das quase 80 famílias da comunidade. O lugar surgiu em
em 2014, e após uma longa batalha judicial para evitar os despejos motivados
pelo empresariado local, em 2016, tornou-se uma ocupação registrada. No início,
as casas eram todas de taipa, levantadas com madeira e barro, mas pouco a pouco
foram ganhando tijolos. Grande parte ainda está inacabada. Em muitas casas,
mães cuidam dos filhos sem a presença masculina. Um dado curioso apontado por
Freire, que também é líder da comunidade, é que há uma quantidade quase
equânime de casais LGBTs e heterossexuais na Terra Prometida. “Mulheres
lésbicas e homens gays, que as famílias não aceitam, acabaram vindo se refugiar
para formar famílias. Ninguém aqui tem preconceito com ninguém, somos uma
grande irmandade.”
A
entrada da ocupação, localizada no meio da Avenida Celso Pinheiro, uma das
maiores da Zona Sul de Teresina, é uma estrada de chão de 20 metros até chegar
às primeiras casas. Moradores têm recebido cestas básicas das igrejas próximas.
Mas, quando a cesta não chega ou não chega para todo mundo, o jeito é recorrer
ao cartão ou aos agiotas. O destino do dinheiro são mercadinhos e pequenos
comércios da região e, com sorte, um açougue – a carne está cada dia mais cara.
Para driblar o prato vazio, contou Benta, algumas famílias vendem os poucos
móveis para liberar o cartão de crédito ou pagar aos agiotas. Na casa de Benta,
o cartão é usado basicamente para comprar comida. O limite
é de 800 reais. A fatura mensal vai de 500 a 800 reais, que a família vai
parcelando e parcelando, na esperança de um dia quitar as dívidas e ver a
geladeira cheia.
Pagar a fatura do cartão
de crédito, a cada mês, tem se tornado cada vez mais difícil para Freire – mas
também para quase 64 milhões de brasileiros inadimplentes no último ano,
segundo pesquisa do Serasa. Comparado a 2020, o número de endividados cresceu
em 2,6 milhões de pessoas. Conforme o levantamento, o crédito tem sido
utilizado cada vez mais para a compra de alimentos. Assim como os moradores da
Terra Prometida, quase 70% dos endividados utilizaram o crédito para comprar
comida. Ou seja, a cada dez brasileiros
que se endividaram com o cartão de crédito, sete o
utilizaram para se alimentar.
Desde antes da pandemia
de Covid, a economia brasileira tenta se reerguer dos percalços econômicos
iniciados em 2015 – quando o país começou a experimentar as piores quedas do
PIB. Com a chegada do vírus, o mercado se fechou ainda mais e pôs fim às
esperanças de uma nova fase de estabilidade econômica no país. A vacinação
trouxe uma luz para a reabertura segura da economia após quase dois anos de
pandemia, mas a guerra na Ucrânia acarretou novos cenários de instabilidade
para o reajuste nos sistemas econômicos. Segundo explica o economista e
professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Fernando Galvão, essa série
de fatores externos e internos vem abalando o país, afetando a qualidade de
vida de milhares de brasileiros.
Galvão lembra que a
inflação em alta nos últimos anos atingiu diretamente os alimentos. Na
tentativa de fugir dos preços mais altos, a população substitui itens de melhor
qualidade por outros de qualidade inferior e a reduz a quantidade de itens
comprados. A eclosão do conflito na Ucrânia trouxe outra preocupação: o valor
do barril de petróleo disparou para além de 130 dólares, e o impacto se espalha
para toda uma cadeia de custos, da gasolina ao frete, afetando inclusive preços
dos alimentos. Com o desemprego batendo à porta e a inflação em alta, o jeito é
parcelar a compra de comida, analisa Galvão – apesar da dificuldade para pagar
os juros de quase 12% ao mês. “O mais dramático de usar um cartão de crédito
parcelado para fazer um supermercado do mês é porque após consumir, você ainda
fica devendo parcelas. Com a necessidade de renovar o estoque, você gera um
montante de novas dívidas”, aponta o economista. Esse ciclo, para Galvão, tem
gerado um processo de empobrecimento e, em um país com a rede de proteção
social fragilizada, tem colocado cada vez mais pessoas próximas da linha da
miséria.
No início de fevereiro,
o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)
apontou que, para custear as despesas de uma família com em média quatro
pessoas – como a família Freire, da comunidade Terra Prometida –,
contabilizando alimentação, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte e
previdência, o salário mínimo deveria alcançar em torno de 5.997,14 reais. Hoje
o salário mínimo é de 1.212,00 reais. Enquanto o salário mínimo ideal não
chega, os Freire seguem se endividando no cartão. Na Terra Prometida, matar um
leão por dia é botar comida na mesa.
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verdade está triunfando https://bit.ly/3JMFZHT
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