André Singer, na Folha de S. Paulo
A operação cênica do Tribunal de Contas
da União, encerrada minutos antes de começar o "Jornal Nacional",
merece entrar para a história dos escândalos políticos-midiáticos. Um órgão de
assessoria parlamentar que se passa por corte para, em dizeres altissonantes,
condenar unanimemente, e em rede de TV, a presidente da República por
"desgovernança fiscal". Pode ser que o impeachment não prospere
nunca, mas do ponto de vista ideológico Dilma Rousseff foi impedida na noite de
quarta (7).
Os fundamentos objetivos da condenação,
no entanto, passam batidos. Desculpe-me o leitor por obrigá-lo a assunto tão
árido, porém não há outro modo de abordar o tema. Tomarei apenas um exemplo,
referente às supostas "pedaladas fiscais", para indicar como as
evidências são fracas.
Vazado em linguagem cifrada, o voto do
relator busca fixar a ideia de que em 2014 a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF) teria sido burlada de maneira criminosa por meio das pedaladas. Como
prova, menciona-se a páginas tantas que as contas relativas à Bolsa Família, ao
Seguro Desemprego e ao Abono Salarial, gerenciadas pela Caixa Econômica Federal
(CEF), teriam ficado negativas em 59% dos dias daquele ano.
O TCU considera que, ao deixar no
vermelho o saldo dos referidos pagamentos, a União estaria usando dinheiro
emprestado da CEF, o que seria proibido pela LRF. Com efeito, produzida, entre
outras coisas, para conter o uso dos bancos públicos, ela proíbe que o Estado
receba crédito de casa bancária por ele controlada.
Ocorre que a resposta do Advogado-Geral
da União, neste particular, foi precisa. Na defesa oral apresentada perante os
ministros, Luís Inácio Adams lembrou que, ao final de 2014, o Tesouro tinha a
receber da CEF 141 milhões de reais. Onde já se viu tomador de empréstimo
receber em lugar de pagar dívida contraída?
A charada se resolve se pensarmos que
não houve empréstimo algum. Os ministérios têm um contrato de serviço com a
CEF, que administra as sobrecitadas contas. Nos dias em que ela fica negativa,
produz-se um haver em favor do banco, quando positiva, em favor do Tesouro,
procedendo-se a um ajuste entre uns e outros. No caso de 2014, quem devia era a
Caixa e não a presidente. Onde o crime, então?
A imprensa, se quiser prestar um
serviço à democracia, tem a obrigação de destrinchar o que está contido nas
milhares de páginas oficiais escritas sobre o caso. Diferentemente dos
episódios de corrupção, tudo está à mostra e pode-se chegar a conclusões
claras.
Ao governo cabe promover ampla campanha
de esclarecimento. Se não o fizer, deixará o principal argumento
pró-impeachment tomar conta do público por mera repetição.
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