O caminho e o desaste
Janio de Freitas, na Folha de S. Paulo
O Brasil experimentou uma democracia frustradamente
reformista, passou por golpe de estado, sofreu a tragédia da ditadura militar,
voltou à democracia caótica, e chegou. Chegou outra vez aos primeiros anos da
década de 1950. O golpismo, o "entreguismo" ameaçador e a
"república do Galeão" foram os estigmas daqueles anos. O golpismo
volta no estilo PSDB; acompanha-o o "entreguismo" apontado na
retirada de pré-sal da Petrobras, aprovada pelo Senado; e a versão civil da
"república do Galeão", sob o nome insignificante de Lava Jato,
evidenciam juntos o estágio em que o Brasil de fato está.
Mas, se é desculpável a imodéstia de quem se
aproximava da vida de adulto naquela década, o pequeno Brasil que não era então
menos discriminatório e menos elitista, no entanto era mais inteligente, culto
e criativo, menos incivilizado em suas cidades e muito, muito menos criminal.
O mundo se mediocriza, é verdade. A França o prova
e simboliza. Mas o Brasil exagera, iludido por uns poucos e duvidosos avanços
econômicos. Como a indústria automobilística, por exemplo, que sufocou os
transportes públicos e deformou as cidades, dois efeitos antissociais no
sentido menos classista da palavra. A degenerescência entra, porém, em fase nova.
E acelerada.
São já os esteios do esboço de democracia a
sofrerem investidas corrosivas. Ainda que sob outras formas, são prenúncios de
repetição, se não contidos em tempo, dos desdobramentos lógicos que períodos
como os anos 50 produzem, historicamente.
É melhor, e é urgente, que se comece a forçar o
Congresso a ser menos infiel às suas finalidades institucionais e mais
responsável com suas funções, seja em apoio ou oposição ao governo. Muitos
poucos estão ali, em especial entre os deputados, para serem parlamentares.
Dividem o seu tempo entre ser massa de manobra de interesses alheios e agir por
interesses subalternos próprios. Uns e outros cada vez mais contrários à
instituição e à democracia pretendida pela maioria do país.
A ministra Cármen Lúcia foi muito aplaudida pela
invocação, em seu literário voto por liberdade biográfica, ao bordão "cala
a boca já morreu". Ninguém observou que o complemento foi omitido:
"quem manda aqui sou eu". O bordão é, na verdade, de extremo
autoritarismo. Amputá-lo valeu como definição pessoal.
Mas não é o meio bordão, é o autêntico, realista,
que os fatos já justificam: partes do Judiciário e do Ministério Público agem
como se respondessem aos direitos civis (e por tabela a quem os defenda): cala
a boca já morreu, quem manda aqui sou eu. E mandam mesmo, pela reiteração e
pela indiferença, porque as instâncias com autoridade e meios de corrigir as
deformações não o fazem, acomodadas no seu próprio poder ou intimidadas pela
parcela da sociedade adepta do bordão. E os direitos e a Justiça se esvaem.
Crises políticas não se agravam sem imprensa.
Crises econômicas expandem-se menos e menos depressa sem imprensa. Hoje em dia
a imprensa brasileira pratica uma solidariedade de modos com as deformações no
Congresso, no Ministério Público e no Judiciário. Assola-a nova onda de
relaxamento dos princípios éticos, para não falar em qualidade jornalística. E
cresce a cada dia uma grande dívida de autocrítica, para relembrar as
responsabilidades dos jornalistas profissionais. Com medo da internet, a
imprensa brasileira foge de si mesma.
O Brasil
não é bem-vindo aos anos 1950.
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