Em defesa do rigor
Janio de Freitas, na Folha de S. Paulo
Os donos e dirigentes das grandes
empreiteiras começavam a ver a Folha pela página A5. Em várias delas, eu
soube também, havia encarregados de examinar todos os pequenos anúncios, todos
os dias. Procuravam, no lugar então fixo desta coluna hoje volátil, e também em
possíveis anúncios cifrados, a revelação da fraude na próxima grande licitação
de obra pública. Foi preciso usar outros jornais, com modalidades diferentes, e
um desequilibrado dirigente do "Globo" até me prometeu, literalmente,
acabar comigo, porque usei os classificados do jornal -não para provocar o
neurótico, claro, mas pela urgência de usar o jornal que encerrava mais tarde a
recepção de anúncios.
Foram muitas fraudes bem arquitetadas
entre governo e empreiteiras, e no entanto frustradas na Folha. Em jogo, dinheiro
público equivalente a vários bilhões de dólares. Neles incluídas, por exemplo,
todas as licitações do metrô carioca no governo Moreira Franco, forçado a
anulá-las.
Foram também vários processos contra
mim, dois inquéritos policiais (um da Polícia Federal, a mando do diretor Romeu
Tuma, outro da polícia fluminense, a mando de Moreira) e uma CPI no Senado.
Nenhuma condenação. Fui defendido por alguns dos mais brilhantes advogados, sem
ser cobrado em um centavo sequer. Palavras de Márcio Thomaz Bastos:
"Defender você foi serviço público".
Por si mesmos, esses fatos não têm mais
interesse. Mas têm uma função. Atestam que advogados aptos a ganhar muito bem
na defesa das ricas empreiteiras, alguns procurados por elas, provaram não ser
meros mercenários. Entre esses advogados, há quem tenha clientes na Lava Jato.
E esteja entre os inconformados com alguns procedimentos de procuradores e do
juiz Sergio Moro. Suas ponderações, formais ou pessoais, porém, são recebidas
com menosprezo, quando não com mal disfarçada arrogância. Tal atitude não é
rara na magistratura e no Ministério Público, mas se a Lava Jato ostenta a
pretensão de estar corrigindo costumes inadmissíveis, só pode ter autoridade
moral se não incorrer, ela própria, em alguns deles.
A carta pública da centena de advogados
foi emocional, sim. Mas as questões que levantou eram infundadas, a ponto de só
merecerem da Lava Jato umas poucas e duvidosas ironias? Tanto não era o caso,
que logo viria a reclamação do ocorrido ao depoimento do delator premiado Paulo
Roberto Costa. Sua frase inocentando um acusado, com ênfase e convicção, foi
omitida na transcrição e substituída por uma afirmação frágil.
A meio do Carnaval, a Folha trouxe respostas de Roberson Henrique
Pozzobon, procurador integrante da Lava Jato, a diversos questionamentos à
operação. O problema com a frase de Paulo Roberto, a seu ver, é
"tempestade em copo d'água", decorrente de releitura equivocada de
advogado de defesa. Não houve erro de leitura nem de releitura: o texto da Lava
Jato é muito claro. O erro foi de redação na Lava Jato, precedido de erro ético,
ou mais, muito grave.
A percepção de que prisões duradouras
são feitas como coação para obter delações premiadas é, segundo Pozzobon,
"uma falácia gigante". Não. É uma evidência. Com repetições
numerosas. Evidência que os procuradores e o juiz da Lava Jato não demonstraram
ser ilusória, antes fortalecendo-a com novas repetições.
Pozzobon recupera o argumento de que
"mais de 70% dos acordos celebrados [de delação premiada] com réus da
operação ocorreram enquanto estes estavam soltos" (texto da Folha). Os 70% soltos não
provam a inexistência de coação sobre os 30% que estavam presos. E nada prova
que, soltos, muitos dos 70% não se entregaram ao acordo por medo à ameaça de
serem presos.
Já disse Sergio Moro que os advogados
reclamam por interesse dos seus clientes. Óbvio, não? Mas enganoso. Na defesa
de procedimentos judiciais corretos, o suspeito, o acusado e o condenado são
circunstanciais, são apenas instrumentos. O que é defendido é o Estado de
Direito, é a democracia, é a Constituição. É cada cidadão, cada um de nós. O
rigor nos procedimentos não impede e nem mesmo dificulta investigações e a
condenação de quem deva tê-la. O contrário do rigor foi o que começou como mau
uso de poder, na Petrobras, e levou à criação da Lava Jato.
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