Mitos monetários e a pandemia
Luiz Gonzaga Belluzzo,
CartaCapital
‘Análises das políticas monetárias e fiscais em situações de
crise tendem a ignorar a importância da expansão da dívida pública’
Em 15 de junho, a
economista Daniela Gabor participou de uma audiência pública sobre as respostas
ao Covid-9 na Comissão de Economia do Parlamento Europeu. Entre os mitos que
Daniela procurou desbancar está a ideia de que os Bancos Centrais ultrapassaram
seu mandato com intervenções desproporcionais nos mercados de títulos públicos,
minando as regras fiscais.
“Através de uma lente
macrofinanceira, este argumento é simplesmente errado. Se perguntarmos como a
estrutura financeira privada e as políticas macroeconômicas interagem, fica
claro que as mudanças evolutivas nas finanças europeias se juntaram às
políticas monetárias e fiscais. A divisão pré-crise das funções macroeconômicas
– política monetária e política fiscal – é uma ficção que não podemos mais
sustentar. Consideremos o mercado monetário: para bancos europeus e
investidores institucionais, o mercado de repo (as ditas compromissadas no
jargão brasileiro) é de 7 trilhões de euros. Dois em cada três euros
emprestados no mercado repo usam títulos soberanos emitidos por integrantes da
Zona do Euro (Alemanha e Itália os maiores) como garantia. A criação de crédito
privado – o pão e a manteiga das operações do BCE – depende fundamentalmente de
títulos soberanos, e assim da política fiscal.”
Na crise de 2008, assim como na
pandemia, o Federal Reserve e o Banco Central Europeu trataram de prover
liquidez para administrar o colapso das relações monetárias de mercado e conter
a qualquer custo a contração do mercado interbancário e a evaporação dos money
markets. Os Bancos Centrais abriram as comportas de seus balanços para conter a
disrupção dos fluxos de crédito, gastos e renda. Para tanto, bombearam trilhões
de dólares para a compra de títulos privados e para a aquisição de títulos
públicos mais longos, achatando a curva de juro, diga-se, já desinclinada.
Os Bancos Centrais cuidam de absorver
ativos privados em seus balanços, enquanto os Tesouros se incumbem da emissão generosa
de títulos públicos para sustentar a liquidez das carteiras de ativos dos
bancos particulares.
A experiência do enfrentamento das
crises demonstra a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a
acumulação produtiva das empresas, o consumo privado e a gestão das finanças do
Estado, particularmente da dívida pública. Nas crises financeiras, o caráter
essencialmente “coletivista” da economia monetária da produção, ou seja do
capitalismo, surge no naufrágio financeiro como a tábua de salvação dos
mercados privados. As relações entre as finanças públicas, a gestão monetária e
o setor financeiro privado não são “externas”, de mero intervencionismo. São
orgânicas e constitutivas.
Nos tempos de “normalidade”, as
formas socializadas do poder privado permitem diversificar a riqueza de cada
grupo, distribuí-la por vários mercados e assegurar o máximo de ganhos
patrimoniais, se possível no curto prazo.
Os bancos e demais instituições
financeiras cuidam de antecipar o estado da liquidez dos mercados de acordo com
as expectativas a respeito da evolução dos balanços das empresas, famílias,
governos e países, ou seja, das mudanças nas relações entre os preços de dois
estoques: a valorização esperada dos ativos públicos e privados e as avaliações
sobre a “qualidade” das dívidas que financiam sua posse.
Nas crises, os agentes econômicos
correm sofregamente para reservas de valor. O economista Emmanuel Farhi ensina
o básico: “As famílias e as empresas precisam provisionar dinheiro. As
instituições financeiras precisam de garantias. Bancos centrais e fundos
soberanos precisam manter ativos estrangeiros. Em tempos de normalidade, essas
reservas de valor assumem muitas formas: dinheiro, depósitos bancários, títulos
do Tesouro, e também títulos corporativos, ações, ou ativos reais, como
imóveis, terras, ouro, entre outros”.
No espocar das recessões, ou pior,
das depressões, os mercados revelam que essas reservas de valor não são iguais.
Elas diferem em seu grau de liquidez – a facilidade com que eles podem ser
negociados – e em sua sensibilidade ao vários de risco. Entre o cardápio de
ativos disponíveis, alguns são percebidos como “mais seguros” do que outros.
As análises e avaliações das
políticas monetárias e fiscais em situações de crise aguda tendem a ignorar a
importância da expansão da dívida pública para o saneamento e recuperação dos
balanços dos bancos. Salvos da desvalorização dos ativos que carregavam, os
bancos privados e outros intermediários financeiros garantem a qualidade de
suas carteiras e salvaguardam seus patrimônios carregando títulos públicos com
rendimentos reduzidos, mas liquidez assegurada.
Criminoso desmonte
do Estado nacional https://bit.ly/2R5RfFB
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